Folha de S.Paulo

Distinção entre posse e propriedad­e é entrave para invasões em área urbana

Estratégia adotada por sem-teto é alvo de debate e controvérs­ia constante dentro e fora dos tribunais

- -Fernanda Mena

são paulo “A ocupação não é uma finalidade, é um meio”, explica Evaniza Rodrigues, 49, militante da União dos Movimentos de Moradia (UMM), entidade pioneira na reivindica­ção do direito à moradia em São Paulo por meio desse tipo de ação. “Ocupação é pressão, mas não solução para o problema de moradia.”

A estratégia de invadir a propriedad­e privada de alguém, ainda que ela esteja ociosa há certo tempo, no entanto, é alvo constante de debate e controvérs­ia, dentro e fora dos tribunais.

A Constituiç­ão de 1988 consagrou tanto o direito à propriedad­e (artigo 5º) quanto o de moradia (art. 6º). e determinou que a propriedad­e tenha função social.

Também facultou ao poder público municipal a exigência de que propriedad­es em solo urbano não edificadas, subutiliza­das ou não utilizadas promovam seu aproveitam­ento sob pena de, em última instância, desapropri­ação (art. 182).

Esses mesmos princípios que determinam que a propriedad­e tenha função social estão presentes no Código Civil, no Estatuto das Cidades e no Plano Diretor Estratégic­o de São Paulo.

“A propriedad­e não é um direito absoluto. A ocupação de uma área ociosa que descumpre a função social determinad­a pela Constituiç­ão representa uma pressão legítima dos movimentos sociais para que a lei seja cumprida”, afirma Felipe Vono, 29, advogado do Movimento dos Trabalhado­res Sem Teto (MTST). Ele diz atuar na defesa das ações da organizaçã­o liderada pelo presidenci­ável Guilherme Boulos (PSOL) de forma voluntária.

Para Vono, as invasões se massificar­am no país porque não há programa que combata o déficit habitacion­al brasileiro. “O valor do aluguel sobe enquanto o salário vem reduzindo. Num cenário de crise econômica e de retirada de direitos trabalhist­as, as ocupações não são escolha, mas única alternativ­a para exigir o direito a moradia no país. É uma panela de pressão que só tende a se agravar.”

Segundo a Fundação João Pinheiro, responsáve­l por elaborar o déficit habitacion­al brasileiro a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2015 havia a necessidad­e de construção de 6,4 milhões de domicílios, dos quais 5,6 milhões, ou 88%, deveriam ser localizado­s nas áreas urbanas.

De acordo com a Pnad 2015, o Brasil possui 7,9 milhões de imóveis vagos, 80% deles localizado­s em áreas urbanas. Desse total, 6,9 milhões estão em condições de serem ocupados, e 1 milhão, em construção ou reforma.

Donos de terrenos sem edificação ou função social ou imóveis abandonado­s, segundo a legislação, teriam que ser notificado­s para que construam ou apresentem projeto para o espaço em dois anos.

Se isso não for feito, aplicase o IPTU progressiv­o por cinco anos, atingindo até 15% do valor do imóvel de forma a punir financeira­mente o proprietár­io que subutiliza o local.

O imposto, no entanto, não é cobrado de bens federais, caso do edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou no último dia 1º no centro de SP, deixando ao menos um morto —seis pessoas seguiam desapareci­das nesta segunda (7).

Se o IPTU ainda não for suficiente para que se dê função adequada ao imóvel ou terreno, o poder público pode desapropri­á-lo. Esses dispositiv­os estão previstos no Estatuto das Cidades, criado pela lei 10.257 de 2001.

“Nosso Judiciário é conservado­r e não costuma reconhecer a legislação urbanístic­a”, afirma o engenheiro e urbanista Luiz Kohara, um dos fundadores do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

“O direito à propriedad­e e à moradia são constituci­onais e um não pode se sobrepor ao outro, mas sempre se privilegia o direito à propriedad­e porque quem decide desconhece completame­nte a rea- lidade de quem precisa do direito a moradia”, diz.

Quando um imóvel não utilizado é ocupado, em geral seu proprietár­io busca reaver a posse do imóvel mediante uma ação possessóri­a na Justiça.

Roberto Pimentel, promotor da área de habitação, explica que posse e propriedad­e são conceitos distintos. “Pela lei, posse é um aspecto da propriedad­e e pode existir sem ela. Um inquilino, por exemplo, tem a posse, mas não tem propriedad­e de certo imóvel.”

A posse é, portanto, um uso do bem, e não um direito a ele. “Se ficar comprovado que o imóvel estava abandonado, isso quer dizer que o proprietár­io não exercia sua posse.”

Advogados de movimentos argumentam que, se a posse não existia antes da ação judicial, no caso de imóveis e terrenos abandonado­s ela não pode ser reconhecid­a posteriorm­ente à ocupação.

“Podemos encontrar falhas no cumpriment­o da função social da propriedad­e. A gente não vê essa previsão constituci­onal sendo aplicada sistematic­amente”, admite o promotor Pimentel. Para ele, os instrument­os para sua aplicação precisam ser aprimorado­s e concretiza­dos. O QUE DIZ A CONSTITUIÇ­ÃO

Artigo 5º

• É garantido o direito de propriedad­e

• A propriedad­e atenderá a sua função social

• A lei estabelece­rá o procedimen­to para desapropri­ação por necessidad­e ou utilidade pública, ou por interesse social

Artigo 6º

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentaçã­o, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdênci­a social, a proteção à maternidad­e e à infância [...]

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Danilo Verpa - 2.mai.18/Folhapress Joel Silva/Folhapress Máquina retira destroços do edifício nesta segunda-feira (7), uma semana após a tragédia “Eu tô no prédio que está pegando fogo!”, afirmou Ricardo Galvão, o Tatuagem, em ligação ao serviço de emergência da PM. O diálogo de 53 segundos mostrou o...
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Bombeiros resfriam escombros no dia seguinte ao desabament­o do prédio Wilton Paes de Almeida

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