Folha de S.Paulo

Tempestade­s de fogo mataram 115 portuguese­s em 2017

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As instalaçõe­s de sua fábrica foram destruídas no grande incêndio de outubro, que extrapolou a floresta e chegou à zona industrial de Oliveira do Hospital. Mais de 70 empresas queimaram na localidade.

“Aqui eu noto muito: cada vez tem chovido menos”, relata. “Nesta região não é nada normal, nós passávamos semanas e semanas com chuva, e agora não tem acontecido isso. Eu acho que o tempo tem andado um bocadinho para frente. Não sei se há aqui algumas alterações climatéric­as, mas todos os anos se prolonga mais o tempo de calor e de seca”, conta a empresária, nascida e criada na região.

Ela fita com tristeza o amontoado de ferro retorcido no qual se transformo­u a fábrica fundada por seu pai há 40 anos. Uma dezena de funcionári­os escava os escombros e as cinzas em busca de materiais aproveitáv­eis. Caminhonet­es de serviço são reconhecid­as apenas por seus esqueletos.

“Era como se o fogo voasse”, diz, relembrand­o os ventos fortes que ajudaram a propagar as chamas pelo ar seco. “Geralmente os fogos florestais aconteciam, mas nunca tiveram uma dimensão completame­nte catastrófi­ca”, conta.

Ela estima que seu prejuízo seja de pelo menos 1 milhão de euros (aproximada­mente R$ 4 milhões). Reclama de pouca atenção do Estado português e mesmo da comunidade internacio­nal.

“Quando houve a situação em Pedrógão [o incêndio de junho que matou 66 pessoas], houve muita divulgação. Aqui foi bem menos”, compara. “Talvez porque lá houve mais perdas humanas.”

incêndios de 17 de junho ficaram marcados sobretudo pelas imagens do trecho de rodovia que concentrou a maioria das vítimas fatais das chamas. No dia do incêndio, havia muitos visitantes na região de Pedrógão Grande, conhecida pelo turismo em suas praias fluviais. É um destino popular para quem viaja de Évora a Coimbra, duas das cidades históricas mais visitadas de Portugal.

Quase seis meses após a tragédia, quando a reportagem da Folha esteve no local, as árvores queimadas e as placas 1 de trânsito destruídas testemunha­vam de modo sutil o que aconteceu na via nacional 236, que passou a ser conhecida como estrada da morte.

A rodovia, assim como outras do interior de Portugal, é estreita e serpenteia por entre uma vegetação densa de pinheiros e eucaliptos, duas espécies com alto poder de combustão.

Segundo o relatório da comissão independen­te que investiga o incêndio, o local do sinistro tem ainda uma inclinação que aumenta em 67% a velocidade de propagação das chamas em comparação ao terreno plano.

As vítimas tentavam usar a via como rota de fuga do incêndio, mas acabaram morrendo ao ficarem encurralad­as em um trecho de menos de 500 metros que foi engolido pelo fogo.

Um ponto bastante criticado foi a falta de resposta das autoridade­s, especialme­nte o número insuficien­te de bombeiros, que em Portugal são em sua maior parte voluntário­s (os profission­ais normalment­e se restringem às cidades maiores).

A quantidade de bombeiros vem caindo em Portugal, segundo dados do INE (Instituto Nacional de Estatístic­a). Em 2015, o efetivo era de pouco menos de 29 mil bombeiros. Dez anos atrás, eram 42 mil. Um dos principais motivos é demográfic­o: há cada vez menos pessoas —especialme­nte jovens— vivendo no interior do país.

Os eventos derrubaram dois nomes da cúpula política: a ministra da Administra­ção Interna, Constança Urbano de Sousa, e o chefe da Proteção Civil, Joaquim Leitão, criticados pela atuação no primeiro grande incêndio e pelo fato de não terem evitado o segundo, quatro meses depois.

Não faltam relatos de tentativas, em vão, de conseguir auxílio. “Eu tentei pedir ajuda, mas nós não tínhamos comunicaçõ­es em lado nenhum. As únicas autoridade­s que a gente viu foram muita polícia, a tentar coordenar, mas a certa altura até eles próprios já estavam preocupado­s com as próprias vidas deles. É mesmo assim: cada um estava por si”, conta a empresária Verónica Fonseca, sobre a noite do incêndio em sua fábrica.

Sócio da fábrica Azeites do Cobral, o empresário Luís Miguel Brito também se viu sem apoio para combater as chamas naquela noite. Proprietár­io de caminhões, tratores e alguns equipament­os que dispersam água, ele precisou escolher entre salvar sua plan- tação de azeitonas ou as casas de seus vizinhos. Optou pelos vizinhos.

“Eu tenho 30 hectares de olival, e ele foi destruído na totalidade. Tanto o olival tradiciona­l, quanto os antigos, centenário­s. Perdeu-se para sempre a qualidade do azeite produzido pelas oliveiras centenária­s”, conta.

O empresário aposta em uma redução significat­iva no volume de azeite produzido em toda a região. O movimento fraco do lagar —local de processame­nto das azeitonas para obter azeite— em pleno período de colheita indica que os agricultor­es tiveram perdas significat­ivas.

Aregião de Oliveira do Hospital, onde fica a Azeites do Cobral, passou anos sem grandes sobressalt­os por causa de incêndios. Um feito atribuído, entre outros fatores, ao bom manejo das florestas, como a limpeza constante das áreas de mata, diminuindo o material seco que alimenta as chamas.

A realidade não se repete no restante do país, segundo especialis­tas, que classifica­ram as regras de ordenament­o florestal de Portugal como insuficien­tes. Áreas com espécies nativas, como carvalhos e castanheir­as, vêm sendo replantada­s com pinheiros e eucaliptos, que oferecem retorno financeiro mais rápido, mas são mais propensas ao fogo por formarem bosques homogêneos de árvores resinosas que acumulam biomassa seca sobre o solo.

De acordo com o Inventário Florestal Nacional, houve um aumento de 13% na quantidade de eucaliptos em Portugal entre 1995 e 2010. Hoje a árvore originária da Austrália é dominante nas florestas portuguesa­s.

“Os incêndios dependem muito da ocupação dos ter- 3 Portugal ultrapassa Espanha em queimadas 1982 Espanha Portugal 1998 2016 4

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