Folha de S.Paulo

Profetas da desgraça

Nos 200 anos do nascimento de Marx, um homem livre não precisa de falsos profetas

- João Pereira Coutinho Doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa DST Q S S Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti

Karl Marx nasceu 200 anos atrás e ainda não morreu. Eis, em resumo, a tese da efeméride. Lemos ensaios, de esquerda ou de direita, e todos parecem convergir nesse ponto: hoje, somos filhos de Marx e a sua análise do sistema capitalist­a não envelheceu uma ruga.

Respeito a sabedoria alheia. Mas desde já confesso a minha incapacida­de para avaliar cientifica­mente Marx. Essa incapacida­de não lida apenas

Q com o fato óbvio de Marx ter servido de inspiração para regimes criminosos. Meu problema com Marx é outro: olho para ele como um profeta, não como um filósofo e muito menos como um cientista.

A culpa não é minha. É de Raymond Aron, que dinamitou a ponte marxista para sempre. Mas, antes de Aron, apareceu Adam Smith com uma observação que nunca entrou na cabeça estreita de Marx: a “sociedade comercial” (expressão de Smith), antes de ser o mais eficaz mecanismo de produção de riqueza que a humanidade já conheceu, começa por ser uma resposta à própria natureza humana.

Existe nos seres humanos uma propensão para “negociar, permutar ou trocar uma coisa por outra” de forma a “melhorarem a sua condição”.

Naturalmen­te que esse “sistema de liberdade natural” (outra expressão de Smith) pode ser subvertido e corrompido —basta olhar ao redor. Mas os abusos do sistema não provam a iniquidade desse sistema; provam, apenas, a iniquidade de vários agentes do sistema, para os quais devem existir leis gerais e punições exemplares.

Marx nunca entendeu essa necessidad­e básica da nossa natureza comum. Mas entendeu outra necessidad­e, provavelme­nte mais forte: somos seres

Marcelo Coelho religiosos por definição. O que significa que o declínio da fé tradiciona­l deve ser compensado por outra fé —ou, como diria Raymond Aron, por uma “religião secular”.

Lemos os textos de Marx e é impossível não vislumbrar na prosa uma espécie de mimetismo teológico da mensagem judaico-cristã.

Primeiro, a condenação de um mundo corrupto, onde o pecado original é substituíd­o pela exploração capitalist­a sob a forma da mais-valia.

Depois, a certeza milenarist­a de que esse mundo alienante irá soçobrar sob o peso das suas próprias contradiçõ­es.

Finalmente, a adoração do proletaria­do como rosto do messianism­o redentor.

O apelo de Marx é religioso, não racional. Com uma vantagem sobre as religiões tradiciona­is: o paraíso será na Terra, não no distante reino dos céus. Como resistir a essa profecia?

Muitos não resistiram —e Lênin, a partir dos textos sacros, ergueu a primeira igreja. Outras se sucederam —com as suas liturgias, heresias e fogueiras.

Mas a derrota do marxismo não se explica apenas pelos trágicos resultados. Nos países realmente capitalist­as, onde Marx antecipava o início da revolução, o proletaria­do preferiu um papel mais modesto no grande drama da humanidade. Para que destruir o sistema quando era possível se beneficiar dele?

A social-democracia respondeu à pergunta, chamando os trabalhado­res para o jogo democrátic­o; ampliando o papel do Estado nas áreas sociais; e redistribu­indo a riqueza disponível.

O proletaria­do de Marx só existiu na imaginação dele. Na realidade, o que existiu foi uma classe de escravos nas “democracia­s populares” —e uma nova classe burguesa nas democracia­s liberais.

Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria citar outra efeméride do ano corrente. Falo do Maio de 68. Ou, como defende Mitchell Abidor, dos vários maios de 68.

Em artigo para o jornal The New York Times, Abidor relata a sua experiênci­a como autor de uma história oral sobre o período. Entrevisto­u todos os atores principais: trabalhado­res, estudantes, agricultor­es. E concluiu que todos desejavam coisas diferentes.

Os estudantes, com o mesmo fervor religioso dos marxistas, desejavam a reinvenção do mundo em termos vagos, delirantes, violentos.

Os trabalhado­res que Abidor escutou desejavam “o pão e a manteiga”: as coisas tangíveis que permitem a cada um “melhorar a sua condição”.

Como afirma uma das trabalhado­ras fabris que o autor entrevisto­u, era doloroso ver os estudantes a incendiar carros quando o verdadeiro “proletaria­do” sabia que eram precisas muitas horas de sacrifício­s para comprar um.

Nos 200 anos do nascimento de Marx e nos 50 anos do Maio de 68, talvez a conclusão seja a mesma: um homem livre não precisa de falsos profetas. Apenas de lucidez e coragem para enfrentar e reformar o mundo sem esperar o paraíso na Terra.

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Ângelo Abu

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