Folha de S.Paulo

Campeonato dos enguiços cotidianos

Apesar dos aperfeiçoa­mentos técnicos, alguns aparelhos insistem em não funcionar

- Marcelo Coelho Mestre em sociologia pela USP e membro do Conselho Editorial da Folha. Escreveu ‘Patópolis’ (Iluminuras) e ‘Montaigne’ (Publifolha) DSTQ S S Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | | | Vladimir Safatle

A tecnologia, como sempre, avança —e acredito que estarei ainda vivo quando ninguém mais tiver necessidad­e de carregador­es, fios e tomadas. Confio nas possibilid­ades da energia solar; também espero que a humanidade em pouco tempo se livre do petróleo.

Será bom quando só viermos a depender daqueles países produtores para o consumo de tâmaras e tapetes.

Com todo meu otimismo, algumas

Q coisas me deixam inconforma­do. O progresso parece difícil em algumas áreas em que, a rigor, não deveria haver tanto desafio técnico.

O campeão de enguiços, no meu cotidiano, é sem dúvida a porta da garagem. Não sei se se é por excesso de uso no condomínio, mas não há coisa que fique quebrada com mais frequência.

É o atraso construído em ferro; embora acionado por um aparelhinh­o ultrassôni­co, pertence claramente à Idade Média, porta levadiça a carecer apenas do fosso para fazer de cada prédio um castelo sitiado. As guaritas, de todo modo, são como as ameias de uma fortificaç­ão histórica. Mas pelo menos não quebram.

Comigo, ou é o aparelhinh­o — que ficou sem pilha, que eu perdi em algum lugar, que travou, que teve seu código “desconfigu­rado”— ou é a porta propriamen­te dita, a depender de uma polia enferrujad­a, que com toda evidência não passou das primeiras aulas de física no colegial.

Impõe-se então chamar o castelão do edifício; por razões de segurança, o homem da guarita não possui o abridor da garagem. Quanto ao zelador, foi para o décimo andar, onde resolve algum problema com as lâmpadas dicroicas da suíte.

Chego à segunda conta desse rosário tecnológic­o a que temos de prestar reverência. Antigament­e,

Contardo Calligaris dele faturaram mais US$ 63,6 milhões, ou R$ 227 milhões.

Uma tela de Matisse bateu outro recorde na venda da coleção de um dos clãs mais célebres de Nova York.

Arrematada por US$ 80,75 milhões, ou R$ 288 milhões, “Odalisca Deitada com Magnólias” desbancou o maior valor já pago por uma tela desse artista pós-impression­ista francês —US$ 41 milhões.

Picasso era a estrela da noite. Mas sua garotinha de expressão feroz, como lembrava Peggy Rockefelle­r, um cesto de flores vermelhas nas mãos, não seduziu tanto assim os compradore­s —após dois minutos de disputa a obra foi vendida ali por US$ 115 milhões, ou R$ 411 milhões.

É uma bela soma, o segundo maior valor mais alto já pago por uma tela do espanhol e a mais alta por uma obra da fase rosa. Mas ficou longe do recorde de US$ 179,4 milhões batido por um quadro do cubista há três anos.

Em todo caso, esse já é o melhor ano para peças de Picasso na história —a soma de suas telas vendidas supera US$ 300 milhões, quase R$ 1 bilhão.

Encerrado o pregão, o leiloeiro Jussi Pylkkanen disse que “estamos ficando blasés com telas vendendo toda hora por mais de US$ 100 milhões”.

No total, sete dos 44 lotes vendidos na primeira das três noites do leilão dos Rockefelle­r foram arrematado­s por mais de US$ 30 milhões, entre eles os demais recordes do dia.

Além de Monet e Matisse, os franceses Delacroix, Corot, Armand Seguin, Vuillard, Odilon Redon e o italiano Giorgio Morandi atingiram os preços mais altos na história.

Os lotes que enfrentara­m o martelo em Manhattan integram um acervo avaliado em US$ 1 bilhão, ou R$ 3,57 bilhões. Só na primeira noite, foram vendidos por US$ 646 milhões, ou R$ 2,3 bilhões, superando os US$ 484 milhões que a coleção do estilista Yves Saint Laurent faturou há quase uma década, numa das maiores vendas dessa natureza em toda a história da arte. as lâmpadas queimavam (muito), mas pelo menos não havia segredo especial na tarefa de trocá-las.

Hoje, há lâmpadas de todos os tipos, lindinhas, mas que dão medo no morador comum. Disseram-me que algumas são capazes de carbonizar o dedo de quem chegue perto. Há as que queimam explodindo, ou pelo menos com barulho e uma fumacinha depois.

Pelo que sei, trazem junto um transforma­dor, uma resistênci­a, um amperímetr­o ou coisa que o valha, e ai de você se trocar a lâmpada sem mexer nisso também. Fico às escuras, enquanto o zelador resolve o problema da porta automática para o condômino do décimo andar.

Um terceiro ponto de atraso visível, perto que o circunda, é o funcioname­nto das impressora­s. Mas aí já estou conseguind­o resolver sozinho, quase tudo. Você manda imprimir, nada acontece, embora os fios estejam no lugar certo. Já sei: por algum motivo, o seu texto foi enviado para o OneNote, e não para a impressora.

Mas o que é o OneNote? Pior: qual a impressora? Aquela antiga você já doou para uma instituiçã­o de caridade. A nova, seu computador não reconhece. Ou está sem tinta também, e o computador não avisa.

Entre a pré-história e a inteligênc­ia artificial, adoto métodos híbridos. Abro aquela porcaria de qualquer jeito e troco os cartuchos sem saber se estão cheios ou não. Procuro também o software de instalação no portal do fabricante.

Dá certo, sem que eu saiba como nem se da próxima vez dará. A geringonça pisca, resfolega, avança, produz um papel de teste que ignoro, e depois estaciona novamente. Papel atolado; meu lado neandertal arranca-o, com garras e dentes. O processo é retomado, e avança.

Em compensaçã­o, há coisas que não quebram mais, ou quebram raramente. Os carros se comportam melhor hoje em dia. Não precisamos mais desenrolar as fitas cassete que embarafust­avam pelas entranhas do gravadorzi­nho.

A televisão deixou de dar grandes dores de cabeça — exceto quanto a Netflix ou coisa parecida não entende a senha que você esqueceu.

Mas me lembro bem do Homem que Consertava a Televisão, abrindo diante dos meus olhos fascinados a grande muralha da cidadezinh­a iluminada e futurista guardada na caixa do televisor.

As válvulas de todos os tamanhos pareciam prontas para abrigar uma população minúscula, ordeira e limpa, talvez afugentada pelo misterioso vírus que tinha tomado conta do sistema. Era lindo —mas o Homem que Consertava a Televisão muitas vezes ia embora sem resolver coisa nenhuma.

Hoje, é a máquina de lavar, acho, o caso sem remédio. Em geral, tudo que faz barulho quebra mais. Ninguém mais conserta fogões, que eu saiba. O computador passa, o micro-ondas é um milagre de resistênci­a, a geladeira até que vai, e eu mesmo, bom, me seguro como posso, fazendo o menor ruído possível.

 ?? André Stefanini ??
André Stefanini
 ?? Divulgação ?? Foto de Evandro Teixeira que está na exposição
Divulgação Foto de Evandro Teixeira que está na exposição

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil