Folha de S.Paulo

Em montagem atual, insubmissã­o de Fedra se perde sob névoa mística

TEATRO

- -Paulo Bio Toledo

Fedra

Qui. a sáb., às 21h; dom., às 18h. Até 27/5. Sesc Pompeia, r. Clélia, 93, Água Branca, tel. (11) 38717700. R$ 9 a R$ 30. 14 anos. são paulo Quando Jean-Baptiste Racine adaptou em 1677 a tragédia “Hipólito” de Eurípedes ele deslocou os fundamento­s da obra. A oposição entre as deusas Ártemis e Afrodite e os cantos corais que movimentam a peça do tragediógr­afo grego desaparece­m na versão de Racine e dão lugar às pulsões amorosas de Fedra, esposa do herói Teseu, mas inebriada pela paixão que sente pelo seu enteado Hipólito. Na versão do autor francês, o sentimento íntimo se mostra tão devastador quanto as determinaç­ões divinas.

A adaptação dramatúrgi­ca que Roberto Alvim faz de “Fedra” também anuncia um deslocamen­to. A despeito de conservar os fundamento­s estruturai­s e o tom recitativo da tragédia neoclássic­a, a trama e o desenlace são alterados.

Na montagem atual, Fedra confronta as normas sociais do mundo grego e consuma seus desejos amorosos para com Hipólito. Estimulada por sua escrava doméstica Enone, Fedra ganha traços insubmisso­s. A adaptação busca reler o mito a partir de influxos da atualidade ao ver ali indícios de “insurreiçã­o feminina” contra uma ordem social masculina e opressora.

No campo da encenação, contudo, a montagem adquire um sentido contraditó­rio. Tudo ocorre em torno de uma estética obscura, espécie de marca autoral dos espetáculo­s do Club Noir. A luz recortada ilumina as personagen­s que falam, ao mesmo tempo em que adensa a escuridão e a penumbra existente para além delas. A trilha sonora preenche a cena com um suspense perpétuo, criando a sensação de iminência de algo que nunca chega. As atuações são sombrias e marcadas por um tipo de inflexão expression­ista nos traços caracteriz­adores das personagen­s.

Isso tudo fortalece a presença de uma figura enigmática que ronda todo o espetáculo e intervém no desenvolvi­mento de cada cena. Com seus cabelos desarranja­dos e sorriso sombrio, ela manipula os fios do destino e assiste o desenrolar premeditad­o dos fatos.

A presença desta figura esotérica sugere que tudo ali se desenvolve sob influência de determinaç­ões metafísica­s. Não é apenas a vontade das personagen­s e seus impasses sociais que movem a tragédia, mas sim uma força superior misteriosa que controla a existência e o destino dos mortais. A enorme cabeça do Minotauro no centro do cenário soa como um tipo de força incognoscí­vel dirigindo os acontecime­ntos.

Apesar de querer ressaltar a insubmissã­o de Fedra e da escrava Enone, a peça logo descaracte­riza a revolta ao colocar tudo sob a égide irracional­ista das determinaç­ões místicas da existência, as quais fazem a insurreiçã­o sempre parecer inócua e irrisória. A névoa de obscuridad­e da montagem contradiz, portanto, os próprios desígnios de reconhecer uma força insurrecta em Fedra.

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