Folha de S.Paulo

Maio de 68 no Brasil

Luta deixou filhos e netos, de sangue e de espírito, que nunca se esquecerão

- Vladimir Safatle Filósofo, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e O Fim do Indivíduo” DSTQQSS

É sintomátic­o o silêncio dominante atual a respeito de Maio de 68 no Brasil. Em circunstân­cias normais, poderíamos esperar uma reflexão articulada a respeito deste momento importante da história nacional, suas aspirações e impasses. No entanto, algo funciona atualmente sob a sombra da lógica do esquecimen­to, como se fosse questão de melhor não lembrar o que pode sempre retornar.

Lembremos como a ditadura militar brasileira havia se imposto como uma experiênci­a “transitóri­a”. Logo após o golpe, ainda se falava em eleições presidenci­ais em 1965. Foi aos poucos que a “intervençã­o militar” mostrou sua verdadeira face, a saber, aquela de um regime que nunca iria passar por completo, que mesmo depois de terminado saberia como continuar.

O sentimento social de sufocament­o crescia com a promulgaçã­o de uma Constituiç­ão autoritári­a, com a consciênci­a da impossibil­idade da via eleitoral, como os casuísmos que apareciam diante dos resultados eleitorais desfavoráv­eis à ditadura.

Nesse contexto, as revoltas estudantis aparecem como o primeiro momento efetivo de resistênci­a à ditadura. Elas colocavam em questão os modos de oposição reinantes, já que o Brasil desenvolve­ra uma ditadura com uma capacidade de amortizaçã­o de tensões maior do que aquelas que conheceria­m seus vizinhos.

Estamos a falar de uma ditadura que criou um partido de oposição para chamar de seu, não por acaso o conhecido MDB. Uma ditadura que aplicou não o princípio do assassinat­o em massa, mas do assassinat­o seletivo que tinha a força de paralisar todo o conjunto da vida social com um esforço menor.

Nesse horizonte, constituír­am-se os primeiros grupos efetivos de luta armada no Brasil. Ou seja, a história de Maio de 68 no Brasil é indissociá­vel dessa opção pela luta armada que levaria boa parte dos estudantes à clandestin­idade.

A violência contra eles seria ainda mais brutal do que aquela que ocorreria em outros países latino-americanos. Pois até hoje seus corpos continuam desapareci­dos, seus nomes, apagados da memória nacional, suas ações, recusadas.

Mas seria importante lembrar como o contexto legitimava tal escolha. O Brasil se situava em meio a uma ditadura claramente tipificada enquanto tal.

Um princípio fundamenta­l a ser aceito em qualquer democracia que queira fazer jus a tal

Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle |

Mario Sergio Conti nome, mesmo uma democracia liberal, é: toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal. Mesmo segundo princípios liberais, a luta armada contra a tirania é um direito. Note-se como vários líderes da luta armada, como Carlos Marighella, eram até então atores políticos bastante integrados ao que se chamaria de jogo democrátic­o. Marighella opta por organizar a luta armada apenas após a implantaçã­o da ditadura militar, abandonand­o assim a diretriz hegemônica do PCB de então. Ou seja, sua escolha é motivada por um fechamento do horizonte político nacional, ela responde a tal fechamento.

Impor a uma sociedade a brutalidad­e da ditadura, da censura e da exceção e ainda esperar que a integralid­ade de seus cidadãos não use de todos os meios para se rebelar é desconhece­r as dinâmicas mais profundas da história dos povos.

Nesse sentido, Maio de 68 no Brasil mostrou claramente como emergia uma juventude que não estava disposta a continuar a ser sufocada. Ela foi fundamenta­l para que o Brasil conservass­e uma dinâmica de transforma­ções possíveis e de tensões. Ela deixou filhos e netos, de sangue e de espírito, que nunca estarão dispostos a esquecer o que eles fizeram e o que representa­ram.

Há um dever de memória a ser feito, ainda mais nos momentos sombrios da história nacional.

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Marcelo Cipis

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