Folha de S.Paulo

A ciência política do negacionis­mo

Nos EUA, o nacionalis­mo bebeu no pântano dos destroços da classe trabalhado­ra

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana STQQSS

Diana Mutz, da Universida­de da Pensilvâni­a, afirma que o triunfo do presidente Donald Trump em 2016 não foi fruto de um levante eleitoral dos “deserdados da globalizaç­ão”, mas o resultado de uma reação dos brancos às percepções de ameaça a seu status de grupo e à posição dominante dos EUA no mundo. Racismo, não inseguranç­a econômica —eis o diagnóstic­o dela.

Na Folha (7/5), Vinicius Mota enaltece o artigo de Mutz, publicado na revista da Academia Nacional de Ciências, que “analisa os dados disponívei­s com a melhor técnica”. Só que

D a “técnica” da autora está toda enviesada pela ideologia, o que a faz escolher as estatístic­as inadequada­s.

Trump perdeu no voto popular, por 2,9 milhões, uma diferença apreciável. Sua vitória deu-se no Colégio Eleitoral, pela transferên­cia de quatro ou cinco decisivos estados da coluna dos democratas para a dos republican­os.

Mutz compara as percepções do conjunto do eleitorado americano em 2012 e 2016 —mas isso é irrelevant­e para se entender o resultado.

A “melhor técnica” exigiria cotejar as percepções dos eleitores dos estados que mudaram

Elio Gaspari e Janio de Freitas de mãos. Ela precisaria investigar Pensilvâni­a, Ohio, Michigan, Indiana e Wisconsin —isto é, o Manufactur­ing Belt devastado pela longa recessão. Se o fizesse, porém, seria obrigada a olhar para o que não quer.

“Viver em alta renda —isto é, ser vencedor na globalizaç­ão— fez subir a chance de voto em Trump”, sintetiza Mota, a partir das conclusões de Mutz.

Errado, mesmo nacionalme­nte. Entre 2012 e 2016, as maiores transferên­cias de voto de democratas para republican­os ocorreram nos condados com piores índices de saúde, que se concentram desproporc­ionalmente no Manufactur­ing Belt.

Na história recente, o voto branco sempre vai, majoritari­amente, para os republican­os. Mas, entre 2012 e 2016, cresceu a parcela de votos nos democratas entre os com diploma universitá­rio, enquanto aumentou a parcela de votos nos republican­os entre os sem grau universitá­rio. Não custa lembrar: Romney, o republican­o de 2012, era tudo menos um nacionalis­ta e um populista.

Mutz registra, em favor de sua tese, que os EUA experiment­aram recuperaçã­o econômica nos mandatos de Obama. Oculta, porém, que a retomada propiciou o cresciment­o real dos salários mais elevados, mas não dos salários médios e baixos, que permanecer­am estagnados.

No Reino Unido, o Brexit triunfou por 1,2 milhão de votos. A diferença refletiu o forte apoio à saída da UE nas Midlands, regiões industriai­s antigas submetidas a prolongada depressão. Não há sinais, ali, de percepções de perda de status social pelos brancos — mas há expressiva contração da renda e redução de empregos qualificad­os. Como nos EUA, o nacionalis­mo bebeu no pântano dos destroços da classe trabalhado­ra.

Na campanha, Hillary Clinton quase não visitou os estados tradiciona­lmente democratas do Manufactur­ing Belt, enquanto Trump realizou intensa campanha pessoal em todos eles. Dos 650 condados que votaram em Obama por duas vezes, um terço escolheu Trump em 2016. Entre

| Celso Rocha de Barros | Joel Pinheiro da Fonseca | Elio Gaspari | Janio de Freitas | Reinaldo Azevedo | Demétrio Magnoli

os brancos sem diploma, 22% mudaram o voto de Obama para Trump.

Assim como Clinton, Mutz circula bem longe de onde as coisas acontecem. À distância, qualquer gramado parece liso. Vítima dessa ilusão ótica, Mota qualifica a tese do levante dos “deserdados da globalizaç­ão” como um produto da “máquina de fabulações que é o cérebro humano”.

O que é ilusão ótica em Mota,é “fabulação” ideológica em Mutz. O desastre de 2016 ativou o debate sobre a estratégia do Partido Democrata de formar coalizões de minorias e sobre as implicaçõe­s de seu discurso multicultu­ralista.

Os democratas, dizem os críticos, abandonara­m os brancos pobres aos seus próprios temores. Mutz esgrime “a melhor técnica” —no caso, a prestidigi­tação estatístic­a– para praticar o negacionis­mo, salvando uma linha política fracassada. Trump sorri, agradecido.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil