Folha de S.Paulo

Médicos relatam drama diário na Venezuela

Sem recursos, hospitais pedem que pacientes tragam até gaze, e máfias dificultam a compra de medicament­os no país

- -Sylvia Colombo

caracas “Eu sou médico, minhas mãos e minha cabeça sabem curar, mas de que adianta se não tenho os recursos? Muitas vezes o que eu faço é ficar ao lado da criança, como um ato de presença, para que ela não morra sozinha.”

Neste momento da entrevista, o pediatra Franco Sorge, 61, que trabalha num hospital infantil público de Caracas, pede desculpas à reportagem, respira fundo e enxuga as lágrimas.

Ele conta que, no seu último plantão, viu cinco crianças morrerem, “de doenças relativame­nte fáceis de curar, ou muitas vezes decorrente­s da desnutriçã­o, seja da criança ou da própria mãe, aí já não há muito que se possa fazer.”

E acrescenta: “muitas vivem em situações tão precárias que não tomam providênci­as simples, como ferver a água e o leite, porque não há gás ou eletricida­de em suas casas. Outro dia atendi a uma que me disse que esquentava a água do banho do seu bebê colocando-a no sol. Como vou explicar para ela que isso não adianta?”.

Sorge, que diz ter sido um médico mais rígido no passado, hoje se compadece. “Não posso brigar com uma mãe que age desse jeito. Estou vendo uma geração perdida nascer na Venezuela.”

O Hospital de Niños em que trabalha, como muitos da cidade, está aberto apenas tecnicamen­te. As salas de exames, com equipament­os obsoletos e sem manutenção, estão vazias.

Muitos hospitais públicos fecharam alguns setores, como de diálise, de terapia intensiva, até mesmo de quimiotera­pia e já não se realizam mais transplant­es em todo o país desde 2017.

Há 3.500 venezuelan­os que vivem com órgãos transplant­ados, e muitos deles ainda precisam tomar medicação constante para evitar rejeição.

Esses remédios, assim como vacinas e medicament­os para doenças crônicas, como diabetes, que eram produzidos no país antes, já não são mais. Neste ano, houve 64 mortes de transplant­ados.

“A maioria dos medicament­os com os quais eu trabalhava já não se encontra na Venezuela, apenas de forma clandestin­a”, diz o psiquiatra Natalio Arias, que hoje vive em Bogotá para poder trabalhar.

Marta Lucía Ceballos, 54, é diabética e passa o dia atrás de remédios, em contato com outras pessoas na mesma situação. Muitas vezes, conseguem com alguém que traz de fora. “Mas se a quantidade é grande, o oficial da aduana ou cobra uma propina ou quer levar para ele, para vender no mercado negro ou porque tem um parente precisando”, relata.

“Mas é viver na incerteza, este mês tenho, não sei se no mês que vem terei. Ou seja, além de diabética, logo vou sofrer também de um problema cardíaco”, conta.

A diferença entre hospitais públicos e privados, hoje, no país, é que nos privados ainda há algum recurso, porque estes repassam ao paciente o custo de acesso ao mercado negro.

Nos públicos, ao ser direcionad­o para um procedimen­to cirúrgico, o paciente recebe uma lista de coisas que tem de levar ao ser internado.

Dela constam desde a bata usada durante a operação até o bisturi, a anestesia, as gazes e o que mais for necessário no hospital.

“Aí existem duas coisas ocorrendo. Uma, a formação de uma máfia, porque sabemos que há gente ligada ao governo que entra com facilidade com esses recursos aqui”, afirma Sorge. “Ou que consegue de outra forma, mas que fazem o possível para garantir terem o maior lucro possível vendendo esse remédio. Essa atitude me deprime. Não é por isso que viramos médicos, para nos transforma­r em contraband­istas de medicament­os.”

Por outro lado, há redes de profission­ais que trabalham para fazer chegar a quem precisa o que sobra de remédios ainda válidos e não usados por outro paciente, por exemplo, ou para que se tragam sem custos medicament­os por meio de viajantes.

Sorge conta que seus colegas entraram em acordo para colocar, nas certidões de óbito, todas as causas da morte, especifica­ndo se havia ou desnutriçã­o ou falta de recursos.

“Nós já perdemos um pouco a esperança de que [o ditador Nicolás] Maduro deixe que a ajuda de outros países chegue. O que podemos é documentar cada morte que ocorreu devido a esse governo. Um dia pode levar a um julgamento em corte internacio­nal, porque é um crime de lesa humanidade”, afirma.

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Carlos Eduardo Ramires - 14.mar.2018/Reuters

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