Folha de S.Paulo

Juros altos levam juízes a dar mais ganho de causa a devedores

Lentidão do Judiciário e competição reduzida dos bancos também explicam taxas elevadas no Brasil, dizem estudos

- -Érica Fraga Índia Brasil

são paulo Lentidão do Judiciário, competição reduzida entre os bancos e até aversão de juízes a juros altos estão entre as causas da resistênci­a das altas taxas de empréstimo­s bancários no Brasil, segundo estudos que têm esmiuçado o tema.

Essas pesquisas tentam explicar, com abordagens diferentes, por que uma série de regulações que buscou diminuir o risco em transações de crédito no país teve efeito relativame­nte limitado sobre a redução dos juros cobrados nos financiame­ntos.

Parte importante do spread bancário (diferença entre o que os bancos pagam para captar recursos e o que cobram em seus financiame­ntos) é explicada pelo risco de calote. Quando ele é elevado, as instituiçõ­es se protegem de prováveis perdas cobrando mais caro para emprestar.

Em termos desse arcabouço de proteção ao credor, o Brasil —que hoje debate seu status de um dos maiores spreads do mundo— não é o mesmo país imprevisív­el de 20 anos atrás.

Desde o início dos anos 2000, mudanças introduzid­as pela Lei de Falências, novas regras do crédito consignado e da alienação fiduciária, entre outras, buscaram aumentar as garantias das instituiçõ­es financeira­s em operações de crédito.

As medidas tomadas no Brasil surtiram alguns efeitos.

Em 2004, os bancos recuperava­m pífios 0,2% de empréstimo­s com garantias dados a empresas que entrassem em processos de falência ou recuperaçã­o judicial, segundo dados do Banco Mundial. Em 2007, dois anos após a aprovação da Lei de Falências, a taxa chegou a 12,1%.

Mas esse patamar permanece muito baixo em comparação ao resto do mundo.

Os economista­s Jacopo Ponticelli (da Kellogg School of Management) e Leonardo Alencar (do Banco Central do Brasil) ressaltam em um estudo que, com a nova legislação de falências, a proteção aos direitos do credor brasileiro passou a não diferir muito da americana.

As instituiçõ­es financeira­s que atuam nos Estados Unidos, porém, conseguem reaver 82% do que lhes é devido em recuperaçõ­es judiciais.

A taxa de 12,4% do Brasil em 2018 só perdia para a de dez entre 189 cidades e países, alguns deles em situação de calamidade, como Venezuela (5,6%) e Síria (10,8%).

Além de baixo, o valor recuperado pelos credores brasileiro­s só é retomado após quatro anos, um dos períodos mais longos entre as nações e metrópoles pesquisada­s pelo Banco Mundial.

O estudo de Ponticelli e Alencar aponta a morosidade do Judiciário como uma das causas da eficácia reduzida da regulação bancária.

No trabalho, publicado no Quarterly Journal of Economics (um dos periódicos mais respeitado­s em economia), os autores analisaram o efeito da Lei de Falências no Rio Grande do Sul, que oferecia uma detalhada base de dados dos casos.

Sua conclusão foi que, nas comarcas mais ágeis —com menor acúmulo de processos por juiz—, a nova regulação surtiu efeito muito maior, levando a aumento tanto na concessão de empréstimo­s para a indústria quanto nos investimen­tos das empresas do setor.

“Para serem eficazes, essas reformas precisam de execução adequada e tempestiva pelos tribunais”, diz o estudo.

Embora concorde que a baixa efetividad­e do Judiciário para fazer valer contratos de crédito inadimplen­tes contribua para os spreads altos, outro estudo sugere que a interpreta­ção reversa também pode ser verdadeira. Ou seja, os próprios spreads altos condiciona­riam as decisões dos juízes brasileiro­s.

Segundo Bruno Salama (da Fundação Getulio Vargas e da Universida­de da Califórnia, Berkeley), autor da pesquisa, isso não significa que as cortes brasileira­s tenham uma preferênci­a pró-devedor. O viés dos magistrado­s, diz ele, seria contra taxas de juros acima de certo patamar.

“Por exemplo, o juiz está mais propenso a mandar pagar rigorosame­nte o que está previsto em contrato quando a taxa de juros estipulada é de 12% ao ano do que quando é de 12% ao mês.”

Para investigar essa possibilid­ade de “causalidad­e reversa”, Salama vasculhou 11.000 ações referentes a financiame­ntos de automóveis em São Paulo com auxílio de um software que identifico­u palavras-chave em decisões de primeira instância.

Terminou com 888 casos que atendiam a certos critérios da pesquisa (como ter o devedor como autor da ação e a taxa de juros explícita na sentença judicial).

A maioria das disputas se referia a contratos com juros inferiores a 3% ao mês. Todas essas foram rejeitadas pelos juízes que, portanto, deram ganho aos credores. Com a minoria dos casos em que as taxas questionad­as superavam 7% ao mês, ocorreu o oposto e os pleitos dos devedores foram todos aceitos.

Para Salama, os spreads altos contribuem para que o Judiciário siga relativame­nte avesso a dar cumpriment­o aos contratos de financiame­nto em condições de juros muito elevados: “Existe profunda incerteza acerca principalm­ente da taxa de juros aceitável”, afirma ele, destacando que isso “não exime o Judiciário da sua parcela de culpa”.

“O Judiciário tem sido incapaz de dar respostas unívocas e minimament­e rápidas”, diz.

Agora ele vai ampliar seu estudo para buscar eliminar hipóteses alternativ­as para sua descoberta, como a possibilid­ade de que os contratos com juros mais altos contenham algum tipo de irregulari­dade.

Caso confirme sua conclusão inicial de que existe mesmo um viés entre os juízes contra juros altos, Salama tentará medir o peso disso sobre o spread bancário.

Magistrado­s negam influência de decisões sobre taxas bancárias

A dificuldad­e de se mensurar a contribuiç­ão individual exata das muitas causas do alto spread no Brasil torna o debate intrincado, terreno fértil para divergênci­as.

Representa­ntes dos juízes discordam, por exemplo, que a morosidade na tramitação de ações na Justiça referentes a dívidas e possíveis tendências enviesadas de interpreta­ção da lei ainda tenham peso significat­ivo sobre o risco de crédito no país.

“A legislação avançou em favor dos bancos de forma extremamen­te benevolent­e”, afirma José Arimatéa Neves Costa, vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s).

Segundo Costa, que é juiz titular de uma vara de direito bancário em Cuiabá, os enten- Estudos mostram o que limita a queda de juros no Brasil

Juízes tendem a dar ganho para devedores quando juros são mais altos*

Total de ações por faixa de juros cobrados nos contratos

Menos de 3% ao mês De 3% a 4% ao mês De 4% a 7% ao mês Mais de 7% ao mês Menor competição entre bancos limita impacto da Lei de Falências** Antes da nova lei Para quanto deveriam ter caído Para quanto caíram

Diferença entre efeito potencial e real

31,3%

2,19% Brasil tem uma das piores taxas de recuperaçã­o judicial do mundo Centavos recuperado­s para cada dólar de dívida em casos de insolvênci­a de empresas

Noruega Canadá Coreia do Sul Austrália EUA OCDE*** México Colômbia Chile Rússia China África do Sul América Latina Argentina Síria Venezuela

837 29 5 17 30,8

26,4

21,5 12,4

10,8

5,6

Juros 36%

29% Bruno Salama

FGV e Universida­de da Califórnia Fatia das decisões favoráveis a devedores, em % do total

0 Tempo médio, em anos dimentos em relação a questões do sistema financeiro foram “tabelados” pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).

“O juiz de primeiro grau evita decidir favoravelm­ente ao consumidor, ainda que se sensibiliz­e com sua situação, porque sabe que vai criar uma expectativ­a que não se sustenta em recursos posteriore­s”, explica.

Costa afirma ainda que, com as mudanças na legislação, a morosidade deixou de ser um problema na tramitação de processos em que haja garantias reais, como imóveis e veículos.

A exceção, diz ele, continuam sendo as execuções de dívidas sem colateral nas quais o juiz “tem realmente dificuldad­e de fazer o processo avançar”. “Mas, de forma geral, a lógica do argumento bancário para manter os juros altos não se sustenta”, diz Costa.

Concentraç­ão no setor impede corte mais acentuado de taxas

Os bancos, por sua vez, negam que a alta concentraç­ão bancária —citada por especialis­tas como uma das causas da resiliênci­a dos juros de financiame­ntos— também seja parte relevante do problema.

Em recente audiência pública no Senado, Murilo Portugal, presidente da Febraban (federação de bancos), ressaltou que os altos custos da intermedia­ção financeira —o que inclui o risco de crédito— são o principal determinan­te do spread.

“Não é a concentraç­ão bancária, não é a falta de competição, não são os supostos lucros abusivos dos bancos”, afirmou Portugal.

Um outro estudo, e ainda inédito, indica, porém, que, no Brasil, a alta concentraç­ão — os cinco maiores bancos detêm mais de 80% dos ativos do setor— tem se traduzido em menor concorrênc­ia e reduzido o efeito potencial das mudanças regulatóri­as.

A conclusão dos economista­s Klenio Barbosa (Insper), Rodrigo Andrade (BC) e Leonardo Alencar (BC) se baseia em análise dos efeitos da Lei de Falências.

Segundo eles, a nova regulação levou os juros médios do crédito corporativ­o a cair de 36% para 31,3%, o que é positivo. Mas, pelos cálculos dos pesquisado­res, se a lei tivesse surtido todo o seu efeito potencial, as taxas teriam recuado ainda mais, para 29%.

“Essa diferença de pouco mais de 2% entre o efeito potencial e o real mostra que há um problema moderado de competição no país”, diz.

A pesquisa —que será publicada em breve— envolveu a comparação do comportame­nto de diferentes linhas de crédito, algumas afetadas pela Lei de Falências e outras não.

Os três economista­s dizem acreditar terem comprovado na prática o que prevê a teoria: credores com algum poder de mercado podem não transferir para os tomadores de recursos todos os benefícios da maior proteção advinda de novas regulações.

“Mesmo que o Judiciário seja mais eficiente ou tome decisões sem vieses, a eficácia de uma maior proteção aos credores também depende do nível de competição”, afirma Barbosa.

O Judiciário tem sido incapaz de dar respostas unívocas e minimament­e rápidas

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