Folha de S.Paulo

Tributação no Brasil beneficia elite de profission­ais da iniciativa privada

Além de altos rendimento­s de servidores, sistema arrecada menos impostos de trabalhado­r como PJ

- -Bruno Carazza

belo horizonte Uma tabela apareceu recorrente­mente na timeline das minhas redes sociais, compartilh­ada tanto por amigos de direita quanto por esquerdist­as.

Trata-se da compilação de um documento da Receita Federal contendo as 15 ocupações com as maiores rendas médias anuais de acordo com a declaração de Imposto de Renda Pessoa Física de 2013.

No segundo gráfico, há o ranking atualizado com os últimos dados disponívei­s (2016) e expandido para as 20 categorias com maiores rendimento­s (veja mais no quadro).

O principal motivo para a indignação que uniu os defensores do Estado mínimo aos seus adversário­s que pregam contra a “casta judicial que condenou Lula sem provas” é o fato de que a lista é dominada por categorias do funcionali­smo público.

Eles têm razão na revolta. Sindicatos de algumas carreiras públicas vêm atacando com voracidade o Orçamento para assegurar rendimento­s que são, na imensa maioria, muito superiores ao seu retorno para a sociedade.

O gráfico, portanto, é um retrato do processo de caça à renda (rent seeking) levado a cabo diuturname­nte pela elite do funcionali­smo público.

O problema é que ele só conta uma parte da história: uma outra elite, esta no setor privado, também se usa habilmente de mecanismos de concentraç­ão de renda.

Se o rent seeking dos servidores consiste em ameaçar a cúpula dos Poderes para aprovar projetos de lei ou obter decisões judiciais concedendo-lhes aumentos salariais e toda sorte de pendurical­hos, categorias do setor privado se valem do sistema tributário e da legislação trabalhist­a para pagar bem pouco imposto.

Trata-se das incríveis vantagens da “pejotizaçã­o” (Pessoa Jurídica), principalm­ente quando combinada com os regimes tributário­s de lucro presumido e Simples e a isenção de IR na distribuiç­ão de lucros e dividendos.

Bernard Appy, ex-secretário de Política Econômica no governo Lula e atual diretor do Centro de Cidadania Fiscal, fez as contas em uma entrevista à Folha.

O mesmo profission­al, pres- Tributação de categorias profission­ais como PJ garante privilégio­s ao setor privado

Enquanto servidores públicos investem sobre o Orçamento Ranking das 20 ocupações profission­ais com os para assegurar rendimento­s elevados, trabalhado­res maiores rendimento­s médios mensais tanto do funcionali­smo

da iniciativa privada viraram PJ público com do setor privado

Rendimento total médio, em R$ por ocupação principal do declarante, em 2016

Setor público Setor privado Setor privado contratado como PJ

Titular de Cartório Jornalista e repórter Médico

Diplomata e afins 36.182 Advogado tando o mesmo serviço, contratado por R$ 30 mil brutos por mês, pode receber, líquidos, R$ 15.109 se for celetista, R$ 24.508 se constituir uma PJ tributada segundo o lucro presumido ou R$ 26.563 se for uma PJ no Simples. “Aqui há um problema distributi­vo claríssimo”, afirmou Appy.

Para jogar um pouco de luz nesse “lado escuro da Lua” da tributação de pessoas físicas no Brasil, dados revelam algumas constataçõ­es. A primeira delas é que esse sistema deve realmente valer a pena, pois o número de pessoas que adere à pejotizaçã­o, principalm­ente em categorias de maior qualificaç­ão, cresceu em dez anos.

É verdade que muitas vezes a opção pela pejotizaçã­o é uma imposição do empregador, que busca aliviar sua folha de pagamentos, acarretand­o até mesmo a precarizaç­ão do trabalho.

Mas também é inegável que diversas categorias têm pressionad­o o Legislativ­o em busca da extensão de hipóteses de adesão aos sistemas de lucro presumido ou ao Simples.

O problema desses regimes é que o ganho da empresa é arbitrado abaixo da realidade. Desse modo, o sócio ganha duplamente: sua empresa paga bem menos imposto, e ele pode distribuir o lucro excedente para si próprio, de forma

Titular de Cartório totalmente isenta.

A caracterís­tica notável desse sistema é que ele gera injustiça: profission­ais semelhante­s são tributados de modos muito díspares em função do regimecont­ratualetri­butário.

Ao beneficiar com impostos menores quem já se encontra no topo da pirâmide, a pejotizaçã­o agrava a desigualda­de.

Assim, se refizermos o ranking das 20 categorias com maiores rendimento­s do Brasil levando em conta a pejotizaçã­o, vamos verificar que jornalista­s, médicos, engenheiro­s, executivos e advogados constituíd­os em PJs disputam os postos mais altos com a nata dos servidores públicos — com a diferença de que pagam significat­ivamente menos IR (veja mais no quadro).

A conclusão desta história não deve servir para rebater críticas aos inúmeros privilégio­s do funcionali­smo, os quais me beneficiam diretament­e. Os números demonstram que do outro lado também há um sistema criado para beneficiar a elite privada.

E, no meio das duas engrenagen­s concentrad­oras de renda, subsiste uma imensa massa de brasileiro­s que sustenta em suas costas um Estado inchado, mas sem ter acesso às brechas tributária­s que jogam sobre si também a carga dos mais ricos.

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