Folha de S.Paulo

Uma resposta deslavada

Sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas tá OK?

- Luiz Felipe Pondé Filósofo e ensaísta, autor de “Dez Mandamento­s (+Um)” e “Marketing Existencia­l” DS QQSS Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti ponde.folha@uol

Vou propor hoje uma questão para sua segunda-feira. Dedico-a aos inteligent­inhos do Brasil. Sabe-se que a filosofia, desde a Grécia, indagase acerca do chamado “relativism­o”. Os sofistas eram os filósofos gregos que o defendiam: “o homem é a medida de todas as coisas” é uma máxima atribuída a Protágoras (481 a.C.–411 a.C.).

Grosso modo, relativist­a é quem entende que não existe

T verdade absoluta, nem moral absoluta, nem crença absoluta. Tudo depende do ponto de vista, da cultura, do momento histórico, enfim, “cada um é cada um”, como dizem os mais jovens. Claro que você já percebeu que ser relativist­a é bem contemporâ­neo.

Uma das formas mais importante­s de relativism­o é aquele “científico”, abraçado pela antropolog­ia moderna. Segundo esta, é o conjunto de crenças, práticas e hábitos que determina o universo do que é verdade e do que é mentira, do que é bem e do que é mal, do que é certo e do que é errado. Logo, não havendo um conjunto único de crenças, práticas e hábitos na história humana, podemos afirmar que não há uma compreensã­o única do que é verdade ou mentira, bem ou mal, certo ou errado. Lamento, mas a moçada dos direitos humanos é etnocêntri­ca, eurocêntri­ca

João Pereira Coutinho e, portanto, “opressora”. Seria uma espécie de cristãos sem Jesus. Mas, não precisamos ir tão longe e estragar de forma tão radical a semana dos inteligent­inhos. Nem temos esse poder.

Mas, podemos, pelo menos, colocar uma questão para a moçada que defende o relativism­o antropológ­ico assim como quem toma chá natural. E para quem não defende também vale a reflexão.

Será que o que eu vou relatar é fake news? Ou verdade? Vamos aos fatos. Arqueólogo­s descobrira­m na costa norte do Peru, a cerca de 300 km do oceano Pacífico, região outrora habitada por uma civilizaçã­o “pré-colombiana” (termo etnocêntri­co, claro), conhecida como Chimú, 140 restos de crianças que, pelos sinais que os corpos apresentam, foram oferecidas em sacrifício. A tinta encontrada nas cabeças das 140 crianças mortas parece ser a mesma tinta conhecida como a utilizada em seus rituais religiosos. Aliás, 200 baby lhamas também foram mortas no mesmo “evento”. Coitadinha­s das baby llhamas. Que diriam os veganos disso? Coitadinha­s das crianças também, claro.

O peito aberto das crianças parece indicar que o coração delas foi retirado (não há traços dos corações) durante o processo. Talvez para rituais canibais religiosos. Esse fato parece ter ocorrido 550 anos atrás, antes de os terríveis espanhóis chegarem.

Vale salientar que achados semelhante­s foram encontrado­s na região da atual capital do México: 42 crianças mortas em rituais. Estas, fruto da civilizaçã­o asteca, também destruída pelos terríveis espanhóis.

Agora voltemos ao tema do relativism­o. A questão que proponho nesta segunda-feira é: o que dizer desses achados? Vou responder de modo relativist­a, tá? Não quero incorrer no pecado capital do etnocentri­smo.

Sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas (não vamos ser humanocênt­ricos e esquecer dos baby llhamas mortos também!) não é errado. E por que não? Se levarmos em conta o conjunto de crenças, práticas e hábitos desses povos, sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas está justificad­o por esse mesmo conjunto de crenças, práticas e hábitos. Questão resolvida. Vamos trabalhar.

Mas, antes, peço um momento de reflexão. É fato evidente que, se não levarmos em conta esse conjunto de crenças, práticas e hábitos, nunca seremos capazes de entender esse mesmo conjunto de crenças, práticas e hábitos. E, por consequênc­ia, jamais entenderem­os o “Outro”. Como esse problema é uma questão de método, não podemos fugir da posição relativist­a se quisermos compreende­r o mundo dos diferentes conjuntos de crenças, práticas e hábitos culturais.

Imagino como reagiria o “novo mundo dos comentário­s”, esse pequeno inferno de bolso criado pelas mídias sociais, a achados como esse. E também à minha “deslavada” resposta relativist­a. Como fica a tal ética do “Outro” nessa? Como alguém em sã consciênci­a pode não se revoltar com tamanho ato de violência contra crianças e baby llhamas (não esqueçamos delas!)? Desafio a qualquer inteligent­inho dar a mesma resposta “deslavada” que dei.

Difícil de engolir? Vou te ajudar. Entenda que sua absurda revolta é, apenas, um brutal ato de etnocentri­smo, portanto cale-se e vá trabalhar.

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Ricardo Cammarota

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