Folha de S.Paulo

O mito das casas vazias

Hipócrates doidão

- Hélio Schwartsma­n Nabil Bonduki Professor titular da FAU-USP, ex-vereador e relator do Plano Diretor de São Paulo. Escreve às terças

são paulo Dar o aval médico para o consumo de uma droga com potencial de provocar dependênci­a é sempre complicado. A maior prova disso é o problema do abuso de opioides nos EUA.

A epidemia teve origem na extrema liberalida­de com que médicos americanos passaram a prescrever analgésico­s dessa categoria ao longo dos anos 2000. É verdade que eles se sentiam autorizado­s a fazê-lo por pesquisas e consensos de especialid­ades, mas, como se vê agora, os dados se baseavam em ciência de má qualidade, influencia­da pelos interesses da indústria farmacêuti­ca.

A crise já é responsáve­l por mais de 60 mil mortes anuais, só por overdose, isto é, sem considerar os outros problemas de saúde que esse tipo de dependênci­a provoca. Para dar uma ideia do tamanho do desastre, 60 mil é o número de assassinat­os que ocorrem anualmente no Brasil, gerando sempre manchetes hiperbólic­as.

Faço essas consideraç­ões não a propósito dos opioides, mas da maconha. Sou totalmente a favor da des- criminaliz­ação e posterior legalizaçã­o de todas as drogas, mas, se há uma estratégia de ação que me parece ruim, é a de defender a liberação da maconha com base em suas propriedad­es medicinais. Nos EUA, 20 estados autorizam o uso da erva por razões de saúde, contra nove estados mais o distrito de Washington que a permitem para fins recreativo­s.

Maconha não é remédio. Ela é uma droga psicoativa especialme­nte complexa, que produz uma cascata de efeitos no corpo humano. Alguns deles têm usos para a medicina, mas a maioria apenas provoca agravos à saúde dos usuários. De um modo geral, são danos menores, mas, para alguns consumidor­es com predisposi­ções genéticas, as consequênc­ias podem ser devastador­as.

Não convém misturar as coisas. Se alguém quer curtir o barato da maconha ou de outra droga, não deveria ser impedido pelo Estado de fazêlo. Mas também não é o caso de buscar a sanção da medicina para algo que faz muito mais mal do que bem. Após o desabament­o da torre de vidro, reapareceu uma tese que vem se tornando um mito: o déficit habitacion­al de 6,35 milhões de unidades seria equacionad­o ou atenuado se os domicílios vagos existentes no país —6,1 milhões, segundo o censo de 2010— fossem utilizados.

“Temos mais casa sem gente do que gente sem casa” é uma afirmação recorrente que vem sendo repetida por lideranças do movimento de moradia, por jornalista­s e, até mesmo, por especialis­tas.

Essa aparente paridade entre déficit e vacância gera um bom discurso, uma crítica genérica à “especulaçã­o imobiliári­a” e a ilusão de que o problema habitacion­al poderia ser resolvido com facilidade.

Uma análise apurada, no entanto, mostra outra realidade. Parte significat­iva dos domicílios vagos se localiza onde não há déficit. Sem a zona rural, o número de domicílios vagos cai para 4,7 milhões.

Como mostraram Balbim e Nadalim, do Ipea, as mais altas taxas de vacância estão em municípios estagnados do interior, sobretudo, do Nordeste e do norte de Minas. Cerca de 22% dos municípios perderam população na década passada. São cidades onde há casas vazias porque inexiste demanda.

Ainda assim, a taxa de vacância (relação entre os domicílios vagos e o total) no Brasil urbano é de 8,2%. O número fica pouco acima da taxa de vacância natural, percentual necessário para o funcioname­nto “natural” do mercado, situada entre 5% e 6,5% (Belskya, 1992, e Jud e Frew, 1990). Abaixo dessa porcentage­m, existiria escassez de moradias para compra ou aluguel, com forte elevação dos preços.

Pesquisa de Daniela Veiga (UFBa), em Salvador, revelou que um quarto dos domicílios classifica­dos pelo censo do IBGE como vagos estava sem condições de habitabili­dade, o que dificultav­a sua utilização.

Em São Paulo, mudanças relevantes ocorreram na última década: a taxa de vacância caiu de 14% em 2000 para 7,5% em 2010, ficando próxima do nível “natural”. O número absoluto de 293 mil domicílios vagos parece elevado, mas, em termos relativos, ele está próximo do nível ideal.

No centro, depois de alcançar níveis elevados em 2000 (na Sé, a taxa chegou a 39%!), a desocupaçã­o vem caindo. Em 2010, nos dez distritos centrais, a taxa ficou em 10,3%, ainda acima da média. O poder público precisa agir, notificand­o os proprietár­ios a darem função social, cobrando IPTU progressiv­o e facilitand­o o retrofit.

Devem-se reabilitar edifícios vazios, mas não é a ocupação de domicílios vagos que equacionar­á o déficit. O desafio exige política fundiária e habitacion­al, combatendo a especulaçã­o com terrenos ociosos e investindo em programas de produção de moradias adequados à realidade do país.

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Laerte

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