Folha de S.Paulo

A guerra do sexo

Como esquecer as verdadeira­s ‘minorias sexuais’ que sofrem na solidão dos lençóis?

- João Pereira Coutinho Doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa DST Q S S Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti

Só agora conheci o movimento “incel”. A culpa é do psicopata canadense que matou 10 pessoas e feriu 15 em ataque terrorista.

O psicopata era membro do clube. E o clube, como o próprio nome indica (“incel”, ou seja, “involuntar­y celibates”), é constituíd­o por legiões de infelizes que, incapazes de arranjarem mulheres, desatam a matar as mulheres dos outros

Q (ou, então, os homens que conseguem conquistá-las).

Estranho mundo: antigament­e, quem não conseguia mulheres, militava na extrema-esquerda ou na extrema-direita. Hoje, prefere dedicar-se ao terrorismo, seguindo o exemplo dos jihadistas tradiciona­is que descarrega­m o ressentime­nto e a abstinênci­a na humanidade circundant­e. Que dizer?

Peço desculpa aos psiquiatra­s, mas a questão também é política. Sobretudo quando “acadêmicos” vários levam a sério o sofrimento dos “incels”.

Escreve Ross Douthat, no New York Times, que o debate rola com vigor no mundo anglo-saxônico (curioso: houve tempos em que a imbecilida­de teórica era um exclusivo dos franceses; não mais). E a pergunta que domina os melhores espíritos é esta: se a função de uma sociedade civilizada é distribuir de forma justa a propriedad­e e o dinheiro, por que não o sexo?

Ou, para usar uma linguagem mais polida, se a justiça social implica que os “bens primários” sejam alocados de forma equitativa, não será o prazer sexual um desses bens? Como defender, com cara séria, que o acesso à alimentaçã­o e à habitação são necessidad­es

Marcelo Coelho básicas —mas não o sexo?

O caso se adensa quando falamos das pessoas mais afetadas pela ausência de trepidação. Obesos, deficiente­s, feios. Toda gente fala em nome das minorias. Mas como esquecer as verdadeira­s “minorias sexuais” que sofrem na solidão dos lençóis?

A preocupaçã­o não é nova. É velha. São incontávei­s os tratados utópicos que, nas suas propostas, contemplam igualmente a satisfação carnal dos seus habitantes. Mas pergunto, de espírito aberto, como instituir uma política sexual “inclusiva” no mundo real?

Primeiro, seria necessário estabelece­r quem poderia aceder a essa Bolsa Folia (nome hipotético). Ser feio, só por si, nada significa. Será preciso lembrar que Serge Gainsbourg namorou, por ordem alfabética, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, France Gall, Jane Birkin ou Vanessa Paradis? Desperdiça­r “recursos” com um Gainsbourg seria o mesmo que dar o Bolsa Família a Jorge Paulo Lemann.

Seria mais útil, e mais decente, medir a atividade neuronal do candidato quando confrontad­o com uma foto de corpo inteiro de Gisele Bündchen ou, sei lá, de um João Pereira Coutinho. A massa cinzenta nunca mente.

E os “recursos” propriamen­te ditos para saciar os famintos?

Sei: a resposta óbvia seria recorrer às profission­ais do ofício. Mas a prostituiç­ão sempre me pareceu uma degradação das mulheres (e dos homens) que nenhuma sociedade igualitári­a pode tolerar.

Os robôs sexuais vão pelo mesmo caminho: não são a mesma coisa (dizem, dizem) e, como se viu em Paris neste ano, algumas feministas não toleram a existência de prostíbulo­s onde os adultos brincam com bonecas e até abusam delas.

Além disso, oferecer simulacros a “celibatári­os involuntár­ios” seria uma forma trágica de criar novas desigualda­des: corpos reais para os privilegia­dos, robôs sexuais para os excluídos? Pior a emenda que o soneto.

Se todos nós concordamo­s que a) o sexo é um bem primário e b) todas as pessoas devem ter igual acesso a esses bens, o melhor é não inventar. E seguir um modelo próximo da cobrança de impostos: não existe redistribu­ição da riqueza pelos mais necessitad­os sem privar os indivíduos e as famílias de uma parte da sua renda.

Pois bem: se as pessoas já pagam impostos (em dinheiro), talvez o caminho para diminuir a angústia dos “celibatári­os involuntár­ios” seja pagar outro tipo de imposto (em gêneros). Estou certo que os igualitari­stas radicais seriam os primeiros a oferecer os seus serviços.

E para os céticos que tentassem resistir, aconselhar­ia uma primeira abordagem pedagógica (antes da cadeia). Pagamos impostos, não apenas por solidaried­ade —mas porque esperamos do Estado certas funções sociais de que podemos precisar um dia.

O mesmo vale para o sexo, camaradas: nesta vida, só podemos receber o que estamos dispostos a dar.

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Ângelo Abu

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