Folha de S.Paulo

O crime não compensa?

Memória contestada

- Roberto Dias roberto.dias@grupofolha.com.br Matias Spektor Professor de relações internacio­nais na FGV. Escreve às quintas

são paulo O Brasil voltou um ano em um ano. O Planalto pode escolher onde colocar as, vírgulas, mas não há como dizer que o país está melhor do que em 17 de maio de 2017, quando estourou o escândalo da JBS.

A agenda reformista deu lugar a um governo na defensiva, que gastou o que tinha e o que não tinha para evitar o afogamento. A ponte para o futuro não mais chegará até a outra margem do rio, e o timoneiro da recuperaçã­o econômica já pulou fora do Ministério da Fazenda.

A despeito desse custo para o Brasil, os três principais personagen­s do escândalo podem ser encontrado­s nos mesmos endereços de antes.

Michel Temer continua sentado naquela cadeirinha do Planalto. Não que tenha faltado telhado de vidro para acertá-lo ali —o material disponível daria, por exemplo, para cobrir todo o Porto de Santos.

Aécio Neves se manteve senador e engatinha pelas sombras da política atrás de novo cargo público, com o foro especial decorrente dele.

Joesley Batista está em casa e cada vez mais rico. Único dos três que é criminoso confesso, viu o lucro de sua empresa subir 43,5% no primeiro trimestre —movimento bem distante do da economia brasileira.

É inegável que a trapalhada da PGR ao concentrar energia numa gravação inconclusi­va e não periciada contribuiu para tal cenário. Os problemas do caminho janotiano, que incluem o risível acordo de leniência, só foram ficando mais nítidos.

A corrupção declarada pela JBS, envolvendo centenas e centenas de políticos, não é um mal menor, muito pelo contrário. Dinheiro público desviado mata gente: são pessoas que morrem por falta de ação do Estado nas filas de hospitais e nos tiroteios urbanos.

A justificad­a revolta social contra quem bate uma carteira à mão armada não tem paralelo com os casos em que alguém toma um monte de dinheiro de milhões de pessoas, deixando ainda um rastro de crise política e econômica. Alguns crimes podem compensar, e muito. A memória histórica sobre a ditadura militar continua sendo contestada, mas o embate brasileiro é totalmente singular: somos a única nação sulamerica­na onde os regimes autoritári­os da segunda metade do século passado continuam sendo tema quente de campanha eleitoral.

Há dois motivos para isso. O primeiro é que a sociedade ainda desconhece detalhes importante­s daquilo que aconteceu. A ferida segue aberta porque tanto as forças que ocupavam o poder quanto seus opositores na luta armada esconderam os aspectos mais nefastos de sua atuação. Diante da limitação de informaçõe­s e de documentos brasileiro­s, ficamos à mercê de evidência empírica estrangeir­a para contar a história mais completa.

O segundo motivo pelo qual a memória da ditadura permanece sob disputa é que, agora, os militares estão de volta na política. Seja na intervençã­o federal no Rio de Janeiro, seja em candidatur­as para o Legislativ­o e para o Executivo, a corporação militar entrou mais uma vez no jogo.

Desta vez, tudo corre sob as regras da democracia, mas há um choque ferrenho.

Por um lado, os candidatos militares contam com espaço fértil para crescer porque a deterioraç­ão desses 30 anos de Nova República tem levado muitos eleitores —inclusive jovens— a olhar com saudosismo para um passado imaginado.

Por outro, setores amplos da sociedade lembram de um passado cheio de incompetên­cia, desordem e corrupção, além da prática corriqueir­a de tortura, assassinat­os e execuções sumárias.

O resultado disso é que um memorando redigido há 44 anos pela CIA sobre o papel do Palácio do Planalto no assassinat­o de prisioneir­os políticos ocupa as páginas dos jornais não apenas porque joga luz sobre aspectos de nossa história, mas porque esquenta o embate atual pelo voto do eleitor.

E aqui há um dado importante do qual pouco se fala. As Forças Armadas de 2018 estão longe de ser um bloco onde reine o pensamento único.

Para mim, a experiênci­a pessoal mais rica da última semana tem sido o depoimento de militares da ativa que fizeram contato depois de ler o documento para dizer que, finalmente, depois de tantos anos, o Brasil tem condições de olhar para seu passado de cabeça erguida. Essa turma não reza pela cartilha do Clube Militar.

Os candidatos militares têm todo o direito de sair à busca de cargos eletivos. Mas seu movimento terá custos.

Quanto mais adentrarem a arena eleitoral, maior será o escrutínio que atrairão para o presente e para o passado da corporação. Mais difícil será jogar a sujeira para debaixo do tapete. Mais impossível será impedir que a sociedade questione.

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Benett

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