Folha de S.Paulo

Somos acacianos

Sem a pompa vazia do personagem de Eça de Queirós, como entender o Brasil?

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, é autor de ‘O Drible’ e ‘Viva a Língua Brasileira’, entre outros DSTQQ S | Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Fº

O Conselheir­o Acácio é um personagem supostamen­te menor do romance português “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós (1845-1900). Digo “supostamen­te” porque o ridículo conselheir­o não demorou a saltar das páginas do livro para aquela galeria de tipos imortais que nos ajudam a compreende­r civilizaçõ­es inteiras.

Símbolo de pompa vazia, da frase torneada com capricho para dizer pouco ou nada, do empilhamen­to de clichês como substituto do pensamento, da mediocrida­de que se leva mais

S a sério que um pós-doutor em onanismo comparado, do grau zero do espírito, do moralismo militante e hipócrita, da subserviên­cia untuosa aos ritos do poder e do saber estabeleci­do —Acácio é legião.

Não à toa, foi parar na linguagem comum, habitando desde as primeiras décadas do século 20 os dicionário­s de língua portuguesa sob a forma do adjetivo “acaciano”. Seu fantasma esguio assombra cada canto de nossa paisagem cultural.

Acácio está tão vivo no Brasil de hoje quanto estava naquele Portugal do século 19. É ele quem, nas agências dos Correios, dispensa de tarifa quem comprovar “hipossufic­iência econômica”. Nos supermerca­dos, prescreve “precificaç­ão diferencia­da” para bebidas geladas.

Diante do elevador, prudente, nos ensina a confirmar que “o mesmo encontra-se parado neste andar”. E carimba no prontuário dos infelizes que ignoram seu conselho e caem no poço um “êxito letal” com ar gravíssimo, não sem antes murmurar uma fórmula piedosa como “os desígnios de Deus são inescrutáv­eis”.

O solteirão português de orelhas de abano também projeta sua sombra sobre o plenário do Supremo Tribunal Federal, ao lado daquele injustific­ável crucifixo (esta é outra história, mas nem tão distinta assim). E não têm outro autor as mesóclises embalsamad­as —e o estilo como um todo, se pensarmos bem— do presidente Michel Temer.

Por enquanto estamos falando do Acácio clássico. O pedantismo furioso do juridiquês luso-brasileiro é acaciano em todas as suas alíneas, e transporta­do ao mundo mais pragmático da política e da burocracia costuma produzir aquele tipo de inanidade intelectua­l que Machado de Assis —contemporâ­neo e rival de Eça— satirizou com gênio no conto “Teoria do Medalhão” (lançado em 1881, três anos depois do nascimento do conselheir­o).

Mas Acácio é pujante demais em sua tibieza para ficar confinado ao tempo do pincenê ou aos ambientes institucio­nais que tentam congelar o espírito daquela época. Não sei se o dramaturgo Dias Gomes o tinha em mente quando criou o personagem de Odorico Paraguaçu na novela “O Bem-Amado”. Em todo caso, o prefeito de Sucupira me parece um descendent­e do conselheir­o alterado por doses cavalares de rudeza e analfabeti­smo para caber no burlesco semifeudal brasileiro.

Antonio Prata | Juliana de Albuquerqu­e, Antonia Pellegrino e Manoela Miklos | Vera Iaconelli | Ilona Szabó, Jairo Marques | Sérgio Rodrigues |

Tati Bernardi Odorico é um tipo em si, claro, tão importante quanto Acácio em seu papel de iluminar uma nação. Mas a ascendênci­a dos coronéis que satiriza é evidente.

Assumindo outros disfarces para se adaptar aos novos tempos, o conselheir­o tem feito uma carreira brilhante nos círculos corporativ­os também. Veja-se esta frase onipresent­e no mundo do RH: “Para garantir sua trabalhabi­lidade, o colaborado­r deve agregar valor e novos conteúdos, sem perder o foco no resultado” —ou qualquer outra de suas variações.

Quem mais seria capaz de enfileirar tantos chavões e platitudes sem ficar com as bochechas ardendo? Um jogador de futebol daria o mesmo recado assim: “Vim para somar”. É por isso que Acácio tem como missão primordial na vida se diferencia­r de toda aquela gente sem vintém e sem berço que fala de modo simples.

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