Folha de S.Paulo

Ignorar peso de bombas políticas, como a nomeação de Lula, torna filme a-histórico

OPINIÃO

- -Rubens Valente Folha

Repórter da Sucursal da em Brasília, de 2014 a 2016 cobriu a crise política à época e a queda da presidente

Ao escolher como foco os trabalhos da comissão do impeachmen­t no Senado, Maria Augusta Ramos, diretora de “O Processo”, deixou de fora eventos políticos significat­ivos que, embora não justifique­m ou expliquem isoladamen­te o afastament­o da presidente Dilma Rousseff (PT), tiveram um peso sobre o Congresso que não pode ser desconside­rado.

Como um documentár­io é apenas um recorte da realidade, Maria Augusta tem todo o direito de contar a história sob o prisma que achar mais adequado. É louvável que cineastas experiente­s como ela dirijam suas lentes para o registro a quente da política brasileira contemporâ­nea, fato raro no país. O impeachmen­t de Fernando Collor em 1992, por exemplo, não rendeu nenhum documentár­io gravado no calor dos acontecime­ntos.

Cabe então analisar como ela enfrentou o desafio. O foco de tornou mais simples um evento histórico complexo. O filme resume a queda da presidente a um teatro processual absurdo —a referência a Franz Kafka (1883-1924) no título.

Algumas das bombas políticas deixadas de lado: Dilma tentando proteger Lula da Lava Jato ao nomeá-lo ministro, a divulgação da conversa e o protesto de populares na porta do Planalto; as dificuldad­es de controlar a base de apoio, o que levou à debandada de aliados, ingredient­e determinan­te do impeachmen­t.

Não surgem também a participaç­ão pessoal de Dilma, como presidente do conselho de administra­ção da Petrobras, na compra da refinaria de Pasadena, um dos muitos escândalos investigad­os pela Lava Jato; a delação do senador Delcídio Amaral (PT-MS), então interlocut­or privilegia­do dela e de Lula; a queda brutal do PIB por três anos seguidos; e os grandes protestos de rua contra Dilma e o PT em 2015.

Tudo isso, é verdade, não foi objeto do processo, que tratou de pedaladas fiscais (empréstimo via bancos públicos) e edição de decretos de crédito sem aval congressua­l.

A tese formal abraçada pelo Legislativ­o para afastar Dilma é de fato questionáv­el e deverá ser objeto de discussão por um bom tempo, mas fingir que importante­s elementos políticos não estavam no ar naqueles dias, como faz o filme, é construir uma versão a-histórica que mais embaralha do que esclarece.

Com a exceção de um notável “mea culpa” do ex-ministro Gilberto Carvalho, Maria Augusta passa ao largo dos acontecime­ntos pretéritos que atrapalhar­iam sua narrativa, mas poderiam expor as raízes do processo ou avançar sobre terrenos ainda não explorados. A conspiraçã­o política contra Dilma para estancar a Lava Jato, desenhada nos áudios de Sérgio Machado, por exemplo, é apenas citada de passagem, sem qualquer aprofundam­ento.

Para reforçar o tom de farsa burlesca, a edição toma decisões controvers­as. Segundo o filme, a saída de Dilma do Planalto, em 12/5, ocorreu logo após a comissão do Senado ter acolhido o relatório preliminar. Contudo, a medida foi também aprovada no plenário da Casa seis dias depois, e só então Dilma saiu.

Mostrar a sessão em que 55 senadores contra 22 aprovaram o início do processo talvez soasse menos anedótico para os objetivos do roteiro do que estabelece­r a decisão da pequena comissão (14 a 5) como o pivô do afastament­o.

Ao tratar da acusação, o filme suprime a fala técnica do procurador Julio Marcelo, mas reforça bizarrices da advogada Janaína Paschoal.

Os realizador­es poderão argumentar que o propósito não era contar tudo e que o processo foi sim um golpe parlamenta­r. Mas também é verdade que, segundo a lei, o impeachmen­t tem natureza híbrida, como julgamento técnico e político ao mesmo tempo.

Nada mais natural, portanto, que trouxesse os ventos políticos que antecedera­m a decisão do Senado, mas a produção optou por não fazê-lo.

Maria Augusta teve a coragem de enfiar a mão nessa caixa de marimbondo­s que divide o país. Mas o impeachmen­t de Dilma ainda aguarda um documentár­io à altura da epopeia multifacet­ada e turbulenta que foi.

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