Folha de S.Paulo

Maio de 68, a revolução que deu certo

As revoluções não adiantam nada sem o esforço para sermos revolucion­ários

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, crítico cultural, escritor (“Hello, Brasil!”), criador da série “Psi” (HBO) DSTQQ S Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | | Mario Sergio Cont

Hoje é 17 de maio. Foi quando a greve geral começou a parecer possível. Uma semana depois, nove milhões de franceses cruzariam os braços. Chegar a Paris de carro se tornaria uma aventura (os postos estavam todos fechados).

Lembro-me de alguém, na faculdade (eu cursava ciências políticas na “Statale” de Milão), anunciando com alegria que, na França, “os companheir­os dançam nas usinas ocupadas”.

S

Eu frequentav­a pouco a universida­de. Viajava com frequência para os EUA, onde as batalhas da contracult­ura (Vietnã, direitos civis, movimentos gay e feminista) me inspiravam mais do que a realidade italiana.

No começo, na “Statale”, a maioria dos estudantes entendia os acontecime­ntos de Paris como um prelúdio revolucion­ário que talvez trouxesse, enfim, a única coisa que podia mudar a vida de todos: o fim da propriedad­e privada dos meios de produção. Com a entrada dos “proletário­s” na luta, o circo capitalist­a pegaria fogo.

Agora, os ditos proletário­s, quanto a eles, não estavam nem aí com a mudança de propriedad­e dos meios de produção. Não queriam estatizar as fábricas. Eles, aliás, nem se considerav­am proletário­s, mas classes médias a fim de uma qualidade de vida melhor: aumentos salariais e alguma participaç­ão nos lucros e nas tomadas de decisão da empresa em que trabalhava­m.

O momento mais importante de 68 para mim foi em agosto: a invasão da Tchecoslov­áquia pelos soviéticos. Eu conhecia a monstruosi­dade do regime; mesmo assim, há uma foto minha, bem na hora em que me chegou a notícia do fim da Primavera de Praga: estou boquiabert­o e arrasado.

Um pouco por isso, um pouco pelo contato com a contracult­ura dos EUA e muito pela constataçã­o de que os operários não eram proletário­s do manual marxista, 68 foi (para mim e para muitos outros) o ano em que descobrimo­s que, para fazer que a vida seja aceitável ou intragável, o que mais importa talvez sejam as formas de domínio que nos controlam.

E as “formas de domínio” são mais daninhas, mais invasivas e menos óbvias do que as grandes estruturas da sociedade na qual vivemos. Ou seja, as formas de domínio nos atormentam e nos constrange­m, quer a gente esteja num regime capitalist­a ou comunista.

Bem em 68, em março e abril, num seminário, eu tinha lido “Da Tirania”, de Leo Strauss (É Realizaçõe­s). Para Strauss, o problema político não deve ser resolvido pela participaç­ão de todos, mas pela excelência dos que governam (quem dera). A suposta liberdade de todos, segundo ele, acaba num relativism­o que não respeita nenhum valor fundamenta­l — com duas consequênc­ias possíveis: uma brutalidad­e idiota (nazismo, stalinismo, ditaduras) ou, então, um vale-tudo hedonista e permissivo (as nossas democracia­s).

Eu gosto do nosso vale-tudo permissivo e hedonista, e desconfio de Strauss, mas ele me levou a perguntar: será que, nesse vale-tudo, somos livres?

Por sorte, 68 foi também o ano em que li “As Palavras e as Coisas” (Martins Fontes) e descobri Michel Foucault. Foucault nunca me deixou desde então. Ele se tornou um guia

Vladimir Safatle imprescind­ível para entender as formas e os caminhos do domínio, na nossa época supostamen­te tão livre (hedonista e permissiva, pensava Strauss).

Com Foucault, comecei a suspeitar da extraordin­ária diversidad­e de técnicas que nos servem para dominar a nós mesmos e aos outros.

São dispositiv­os invisíveis, que se confundem com comportame­ntos ditos “normais” e expectativ­as sociais quase triviais: em suma, há normas implícitas, silenciosa­s, que sequer aparentam regrar nada e que seguimos porque seus mandamento­s seriam “razoáveis” ou “naturais”. Não adianta mudar o sistema político ou a organizaçã­o do trabalho sem revelar e combater as formas ocultas de domínio sobre as vidas concretas.

Um exemplo? Onde começa o fracasso da Revolução Cubana? Na conjuntura da Guerra Fria? Ou nessa frase de Castro, o revolucion­ário, em 1965: “Jamais chegaremos a acreditar que um homossexua­l é capaz de encarnar as condições e os requisitos de conduta que permitiria­m considerál­o um verdadeiro revolucion­ário, um verdadeiro militante comunista”?

Essa foi a grande lição de 68: as Revoluções (com R maiúsculo) não adiantam nada sem o esforço para sermos revolucion­ários (com r minúscula), ou seja, sem o esforço para escapar da nossa própria paixão de regrar e controlar a vida concreta, a dos outros e a da gente.

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Mariza Dias Costa

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