Folha de S.Paulo

Civilizaçã­o ou barbárie

País deve rever passado e julgar agentes da repressão

- José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso Ex-integrante­s da Comissão Nacional da Verdade

“Tive os meus filhos sequestrad­os e levados para sala de tortura, na Operação Bandeirant­e. [Ela] com cinco anos e [Ele] com quatro anos de idade. [...] Inclusive, eu sofri uma violência, ou várias violências sexuais. Toda nossa tortura era feita [com] as mulheres nuas. [...] E os meus filhos me viram dessa forma.” (Depoimento de vítima da repressão prestado em 2013 à CNV e à CV-ALESP)

Situações de horror como esta se multiplica­m ao longo do relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade), concluído em 2014 e que registra a prática de execuções, desapareci­mentos forçados, ocultação de cadáveres e tortura durante a ditadura militar que se prolongou no Brasil de 1964 a 1985.

Ao apurar essas graves violações de direitos humanos, a CNV concluiu que “elas foram o resultado de uma ação generaliza­da e sistemátic­a do Estado brasileiro”. “Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores se convertera­m em política de Estado, concebida e implementa­da a partir de decisões emanadas da Presidênci­a da República e dos ministério­s militares.” (pág. 963 do vol. 1 do relatório, acessível em www.cnv.gov.br).

O revelador documento do governo americano recentemen­te localizado e divulgado pelo professor da FGV e colunista da Folha Matias Spektor é mais uma evidência dessa conclusão. Nele, há a confirmaçã­o, já em 1974, da aprovação, pelo presidente Ernesto Geisel, da continuida­de da política de execução de opositores da ditadura.

Diante da abundância de provas, a CNV indicou, entre as recomendaç­ões do relatório, a “determinaç­ão, pelos órgãos competente­s, da responsabi­lidade jurídica —criminal, civil e administra­tiva— dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigad­o pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositiv­os concessivo­s de anistia inscritos nos artigos da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposiçõe­s constituci­onais e legais”.

A CNV “considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrária­s, tortura, execuções, desapareci­mentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatív­el com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacio­nal, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematic­idade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescrit­íveis e não passíveis de anistia” (pág. 965 do vol. 1 do relatório).

A medida de julgamento dos agentes públicos envolvidos na repressão já havia sido determinad­a ao Estado brasileiro por meio de decisão de 2010 da Corte Interameri­cana de Direitos Humanos.

O Ministério Público Federal, evoluindo de sua posição anterior, passou a promover ações objetivand­o a condenação dos responsáve­is.

A recomendaç­ão da CNV permanece, portanto, integralme­nte válida e, no relatório, estão nominadas 377 pessoas comprometi­das com os crimes apurados, cerca de metade delas provavelme­nte ainda vivas.

Impõe-se, assim, a promoção do afastament­o dos eventuais impediment­os da Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia), aprovada ainda durante a ditadura, para que a atuação do Judiciário possa ter curso.

Isso poderá se dar por via de decisão do Supremo Tribunal Federal, havendo ações aguardando julgamento, ou de deliberaçã­o do Congresso Nacional, sendo diversos os projetos nesse sentido.

O fundamenta­l é que a civilizaçã­o prevaleça sobre a barbárie e o Brasil deixe a condição vergonhosa de ser a única exceção entre os países da América Latina —que, olhando de frente para o seu passado, julgaram os agentes da repressão, promovendo a justiça e a democracia. André Callegari, advogado de Joesley Batista

Nota da Redação Leia abaixo a seção Erramos.

mercado (18.mai., pág. a14) O que caiu em abril foi a exportação de

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