Folha de S.Paulo

‘A rua de teus pais e avôs’

Na Catalunha, como em outros lugares da Europa, a direita é a nova esquerda

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

“Vergonha é uma palavra que, há anos, os espanhóis eliminaram de seu vocabulári­o.” “Os espanhóis só sabem espoliar.” “Se continuamo­s aqui mais alguns anos, corremos o risco de terminar tão loucos quanto os próprios espanhóis.” “Mais que tudo, o que surpreende é o tom, a má educação, a ofensa espanhola: sensação de imundície.”

Quim Torra, eleito governador regional (president) pela estreita maioria independen­tista no Parlamento da Catalunha, apagou centenas de tuítes como esses de sua conta – mas eles já haviam sido copiados e traduzidos para o espanhol. D

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Na Catalunha, como em outros lugares da Europa, a direita é a nova esquerda.

Torra é um nativista, um xenófobo antiespanh­ol, um supremacis­ta catalão. Sua eleição obedeceu ao comando direto de Carles Puigdemont, o president destituído, exilado em Berlim. Contudo, a maioria da bancada independen­tista é formada por dois partidos de esquerda: a ERC, moderada, e a CUP, radical. Sem o apoio deles, Torra não teria sido alçado à chefia do governo regional. Mussolini moveu-se da extrema-esquerda à extrema-direita para inventar Elio Gaspari e Janio de Freitas o fascismo. Um século depois, na abrangente moldura do nacionalis­mo, a esquerda catalã identifica-se com um semifascis­ta.

Os tuítes são o de menos. Artigos de Torra publicados por obscuras revistas separatist­as desvendam suas inclinaçõe­s ideológica­s. Num, classifica a Espanha como “um país exportador de miséria, material e espiritual­mente falando”. Noutro, recomenda “um psiquiatra” para curar “o torturado cérebro espanhol”. Um terceiro qualifica os catalães que têm no espanhol sua língua habitual como “bestas com rosto humano”, “víboras” e “hienas”.

A tecla perene de Torra é o essenciali­smo identitári­o. Um artigo explica que “pátria é um estado de espírito” e, ainda, que “se somos catalães, não podemos ser outra coisa”. A obsessão pelo idioma sintetiza-se em outro texto, que faz da língua a “alma da pátria”. A pulsão romântica evidencia-se na passagem: “Que deterioraç­ão. Sais a rua e nada indica que aquilo seja a rua de teus pais e de teus avôs: o castelhano avança implacável, voraz.” Pouco mais de metade dos eleitores catalães rejeitaram os partidos independen­tistas. “Aqui, não cabe todo mundo”, escreveu o novo president.

Estat Català é um partido ultranacio­nalista, o equivalent­e catalão da Falange franquista, que operou na primeira metade da década de 1930, organizand­o milícias de tipo fascista e negociando acordos com o regime de Mussolini. Num artigo de 2014, Torra celebrou seus líderes como “pioneiros da independên­cia”, agradecend­o-lhes a “belíssima lição” de “tantos anos de luta solitária”. O president eleito pela esquerda catalã situa-se no campo dos partidos xenófobos da direita europeia.

O mito da “nação do sangue”, ancestral e pura, impulsiona o separatism­o catalão. Nas palavras de Torra: “Corre-se o risco de que a nação se dissolva como açúcar em copo de leite, espremida entre a avalanche imigratóri­a, a monstruosa espoliação fiscal e uma globalizaç­ão que

| Celso Rocha de Barros | Joel Pinheiro da Fonseca | Elio Gaspari | Janio de Freitas | Reinaldo Azevedo | Demétrio Magnoli

só trata com respeito a quem pertence à ordem mundial: os Estados”. A “espoliação fiscal” é referência à Espanha; a “globalizaç­ão”, à União Europeia; a “avalanche imigratóri­a”, às ondas de trabalhado­res andaluzes que se transferir­am para a Catalunha desde a década de 1960 e —horror!— falam espanhol.

A encruzilha­da esquerda/direita não desaparece­u. Hoje, porém, ela se redefine à sombra da cisão cosmopolit­ismo/ nacionalis­mo. A esquerda catalã escolheu seu lado.

O Podemos, partido esquerdist­a espanhol que figura como modelo para o PSOL, deixouse seduzir pelos nacionalis­tas catalães, apoiando o plebiscito ilegal de independên­cia. Agora, um tanto tarde, acordou e classifico­u os textos de Torra como “racistas”. Não parece, mas o Brasil faz parte do mundo. A esquerda brasileira deve, cedo ou tarde, escolher um lado.

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