Cisterna é tecnologia eficaz contra seca, diz especialista
Criada por agricultor brasileiro, solução leva água para 1,2 milhão de famílias DIÁLOGOS TRANSFORMADORES
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Uma frente fria associada a um ciclone extratropical chega ao Sul e se espalha pelo Brasil, trazendo frio, vento forte e chuva intensa. Pode haver geada e neve nos pontos mais altos e há risco de temporais
são paulo “Seca não se combate, como não se combate a neve”, diz o sociólogo Antonio Barbosa, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). A afirmação marca um novo paradigma na maneira de lidar com as regiões mais áridas do país, em uma articulação que agrega 3.000 organizações em dez estados.
É o que Barbosa chama de revolução silenciosa no Semiárido brasileiro. “Em vez de combater a seca, estamos aprendendo a conviver com ela, trabalhando com o estoque de água em cisternas.”
Quem sobrevoa o Semiárido, que ocupa cerca de um quinto do território nacional, com 24 milhões de habitantes, encontra uma paisagem pontuada por cisternas redondas ao lado de praticamente todas as casas da zona rural.
Já são 1,2 milhão de famílias com esse recurso, entre 1,7 milhão que habita os 1.262 municípios da região. “As cisternas se confundem com o cenário e atendem a muitas comunidades em sua totalidade, permitindo a criação de animais e o cultivo de hortaliças e grãos”, diz o sociólogo.
A revolução começou a partir de uma solução simples, inventada por um agricultor de Sergipe. Em meados dos anos 1950, Manoel Apolônio, conhecido como Nel, decidiu deixar o município de Simão Dias (a 82 km de Aracaju), de 40 mil habitantes, para tentar a vida na Grande São Paulo.
Viajou 13 dias na carroceria de um pau de arara. Arrumou emprego como pedreiro e foi escalado para construir uma piscina redonda. Ali, conheceu a técnica que junta placas de areia e cimento para criar o formato circular. “Foi quando ele pensou: ‘Rapaz! Posso fazer isso para armazenar água!’”, conta Barbosa.
Na Bahia, Nel desenvolveu as primeiras cisternas para amigos e vizinhos, com a ajuda das famílias envolvidas. Com capacidade para 16 mil litros, o reservatório recebe água da chuva e pode abastecer uma família de cinco pessoas por seis a oito meses.
A água que cai nos telhados segue por uma calha, conectada à cisterna ao lado da casa. A ideia inovadora se popularizou nos anos 1970 e inspirou organizações da sociedade civil que atuavam na região.
A invenção foi reconhecida como tecnologia social –uma solução simples, de amplo impacto, quase sempre vinda do conhecimento de alguém da própria comunidade, capaz de mudar uma realidade.
A partir da articulação da ASA, em 1999, a tecnologia foi adotada como solução eficiente pelas organizações civis, influenciando políticas públicas voltadas ao acesso à água em toda a região semiárida.
Nascia também o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), adotado como política pública pelo governo federal, em 2001, para descentralizar o acesso a água.
“Essa tecnologia possibilita inúmeros avanços para as famílias e as comunidades rurais, com o aumento da frequência escolar e a diminuição da incidência de doenças em virtude do consumo de água contaminada”, diz Rogério Biruel, diretor da Fundação Banco do Brasil (FBB).
A cisterna de placas prémoldadas é certificada pelo Banco de Tecnologias Sociais da FBB, hoje com 986 iniciati- vas. “São conhecimentos que, compartilhados, mudam realidades”, afirma Biruel.
Segundo Barbosa, a adoção em larga escala das cisternas deixou de alimentar a indústria da seca, movida por obras mirabolantes, como grandes açudes, mas sem ligação para fazer a água chegar às famílias.
“Isso só gerou desigualdade. A água ficava com fazendeiros e políticos”, diz. “Em terra seca, quem tem água é rei.”
Hoje, o P1MC é avaliado por especialistas como o maior programa de democratização e descentralização do acesso à água do Brasil e do mundo.
Os índices de mortalidade infantil no Semiárido confirmam. De 2000 a 2010, os municípios com dois anos de atuação do programa apresentaram redução de 19% nas mortes de crianças de 0 a 4 anos por diarreia (causa ligada a falta ou má qualidade da água), a cada mil nascidos vivos.
Nos municípios com nove anos de atuação, a redução foi de 69%, segundo estudo do Ipea, de 2017.
Com um longo histórico de secas, a ASA surge nos anos 1990, após a considerada a pior delas: de 1979 a 1983, quando morreu 1 milhão de pessoas –o que o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997) chamou de genocídio brasileiro.
Em 2018, Barbosa afirma que o país está saindo de uma seca tão devastadora como a do passado, lembrando a crise hídrica que chegou a São Paulo, de 2014 a 2016. O impacto no Nordeste, no entanto, foi menos sentido, graças ao P1MC. “Substituímos um milhão de mortos por um milhão de cisternas”, diz Barbosa.
Aos 80 anos, Nel segue trabalhando na roça, na zona rural de Simão Dias. Sua filha, a jornalista Eliangela Carvalho, conta que cresceu vendo o pai construindo as cisternas.
“Ele se sente feliz por ter conseguido viver do seu invento e amenizado a seca e o sofrimento da população”, diz a filha de um sertanejo que vive em um sertão irrigado por sua inovação há três décadas. Antonio Barbosa, da ASA, será um dos protagonistas do evento “Diálogos Transformadores Tecnologias Sociais: Soluções que Mudam Realidades”, na quarta-feira (23), no auditório da Folha, em SP.
O evento, realizado por Folha e Ashoka, tem apoio da Fundação Banco do Brasil, representada pelo diretor Rogério Biruel. O público que deseja acompanhar o debate pode se inscrever gratuitamente até quarta, ao meio-dia, pelo site eventos.folha.com.br.