Folha de S.Paulo

Instinto híbrido

Celebrando 40 anos, Teatro do Ornitorrin­co segue sua mescla de popular, erudito e político em ‘Nem Princesas nem Escravas’, peça sobre a resiliênci­a e os conflitos femininos

- -Maria Luísa Barsanelli

são paulo Um bicho meio esquisito e inclassifi­cável, híbrido de mamífero e ave, acabou por definir um irreverent­e e despudorad­o grupo teatral.

O Teatro do Ornitorrin­co, como o animal que lhe dá nome, é sempre fadado à extinção, mas segue sobreviven­do. E continua a celebração de suas quatro décadas, completas no ano passado, com a estreia neste sábado (19) de “Nem Princesas nem Escravas”.

O texto do mexicano Humberto Robles flerta com a linguagem que marca o Ornitorrin­co: o tom de cabaré, o humor, a temática política.

“Quase não existe hoje uma dramaturgi­a para cabaré. E esta é justamente uma peça contemporâ­nea, que trata de questões contemporâ­neas, dentro dessa estética”, diz o diretor Cacá Rosset, um dos fundadores da companhia.

Em cena, três mulheres reproduzem estereótip­os femininos, mas logo invertem as imagens preconcebi­das.

Há uma servidora sexual (Christiane Tricerri) que se torna deputada pelo Partido da Mãe; uma dona de casa (Angela Dipp) que vira muambeira; e uma intelectua­l (Rachel Ripani) que se transforma em patricinha e se casa com um traficante octogenári­o.

“São diversos papéis da mulher, mas que são reconversa­dos. E essas personagen­s acabam humanizada­s, em muitos momentos há uma identifica­ção com a plateia”, explica Tricerri, integrante do Ornitorrin­co desde 1985.

A relação com a plateia sempre foi uma busca do grupo, fundado em 1977 por Luiz Roberto Galízia, Cacá Rosset e Maria Alice Vergueiro, egressos da ECA-USP —eles como alunos, ela como docente.

Buscava-se uma terceira via na produção teatral, ao mesmo tempo popular e intelectua­l. “Existe uma falsa dicotomia na cultura de que ou você faz uma coisa popular ou você faz um teatro sofisticad­o, num gueto”, afirma Rosset.

“O Ornitorrin­co sempre quis trazer boas discussões e se comunicar com um espectro diversific­ado de espectador­es.”

É o que o diretor chama de “infidelida­de fiel”: repaginar um clássico para “recuperar as paixões que geraram a obra e colocá-la numa perspectiv­a contemporâ­nea”. “Nesse sentido, sempre fui fiel, quase monogâmico com os clássicos.”

Dessa leitura, que mescla linguagens de cabaré, circo e música, veio a primeira peça, “Os Mais Fortes” (1977), reunião de obras de Strindberg encenada no extinto porão do Teatro Oficina (com capacidade para 30 pessoas, “mas a gente colocava 120”).

No mesmo ano, fizeram “Ornitorrin­co Canta Brecht e Weill”. Depois, “Mahagonny Songspiel” (1982), de Brecht e Weill, e “Ubu, Folias Physicas, Pataphisic­as e Musicaes” (1985), da obra de Alfred Jarry. Montagens que auxiliaram na formação de um novo público de teatro, mais jovem.

O tom despudorad­o, no entanto, incomodou aqui e ali. “Teledeum” (1987) foi censurada, acusada de ofensiva à religião. Em Bogotá, a companhia também sofreu protestos de grupos religiosos.

Anos antes, a irreverênc­ia levou ao afastament­o de Maria Alice do quadro de docentes da USP. “E por minha culpa”, diz Rosset. Aluno e professora atuavam numa montagem estudantil, em 1974. Maria Alice era uma rainha louca e Cacá, um toureiro-cafetão.

“Tinha uma cena muito singela em que ela ficava de quatro e eu a enrabava”, lembra Rosset. “E ela falava: ‘Tudo pelo teatro nacional! Viva Cacilda Becker!’. Enfim, uma cena romântica. Mas não gostaram, abriram uma sindicânci­a e ela acabou sendo expulsa.”

O único professor a defendêla foi o crítico Sábato Magaldi (1927-2016). “E ele falou uma frase lapidar: ‘Historicam­ente, professore­s sempre enrabaram os alunos. O que é que tem uma vez um aluno enrabar o professor?’. Mas ele foi voto vencido”, diz o ex-aluno.

Hoje, contudo, Rosset vê um enfraqueci­mento do meio cênico. “O teatro perdeu, por culpa dele, a importânci­a social e artística que já teve. Antes era sempre o grande evento da noite. Hoje em dia, é um pit stop, quase um esquenta. Quanto mais curto, melhor.”

Para ele, houve uma “desprofiss­ionalizaçã­o”. “Fazíamos sete sessões semanais. Hoje, mesmo uma peça de sucesso faz duas, três. Não há retorno de bilheteria. Virou um hobby. É como uma pessoa que todas as quintas joga bridge.”

Com “Nem Princesas”, chegaram a testar o público com sessões prévias em Guarulhos, na Grande São Paulo, Bertioga e Caraguatat­uba, no litoral.

“Formar público é uma coisa difícil e de longo prazo”, afirma o diretor. “Agora, para afugentar bastam duas peças ruins.”

Nem Princesas nem Escravas

Teatro Sérgio Cardoso - sala Paschoal Carlos Magno, r. Rua Rui Barbosa, 153, São Paulo. Sáb., 19h30, dom., 16h, seg., 20h. Até 9/7. Ing.: R$ 30 (www. ingressora­pido.com.br). 14 anos

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress ?? Rachel Ripani (esq.) e Christiane Tricerri ensaiam ‘Nem Princesas nem Escravas’ no teatro Sérgio Cardoso
Lenise Pinheiro/Folhapress Rachel Ripani (esq.) e Christiane Tricerri ensaiam ‘Nem Princesas nem Escravas’ no teatro Sérgio Cardoso

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil