Folha de S.Paulo

Agressivo e escrachado, grupo é reserva do teatro de bufões

- -Nelson de Sá

ANÁLISE são paulo As datas e até os personagen­s se confundem na acidentada trajetória do Ornitorrin­co. O grupo nasce formalment­e em 28 de maio de 1977, quando Cacá Rosset, Maria Alice Vergueiro e Luiz Roberto Galízia estreiam “Os Mais Fortes”, adaptado, interpreta­do e dirigido pelos três.

Mas talvez o ano mais adequado para marcar seu início seja 1965, quando o aluno Cacá, 11, é dirigido pela professora Maria Alice em “As Preciosas Ridículas”, de Molière, no colégio Aplicação, escolamode­lo vinculada à Faculdade de Educação da USP.

Cacá e Maria Alice, como intérprete­s e/ou encenadore­s, se reencontra­riam nas décadas seguintes para peças de Brecht, Shakespear­e e Molière, os autores mais próximos de ambos e dos artistas aos quais eles se ligaram.

O primeiro foi Luiz Antônio Martinez Corrêa, que dirigiu as brechtiana­s “O Casamento do Pequeno Burguês” em 1973, com Maria Alice, e “Sai de Mim, Tinhoso” em 1975, colagem na qual Cacá estreou como assistente de direção.

Dois anos depois, foi Luiz Antônio quem abriu as portas do Oficina para a estreia do Ornitorrin­co e, nos anos seguintes, dirigiu Cacá e Maria Alice em musicais como “Ópera do Malandro”.

Mas o humor de ambos era mais agressivo e escrachado, e sua música, mais para cabaré do que musical —e foram se revelar por inteiro em montagens do próprio grupo como a colagem “Teatro do Ornitorrin­co Canta Brecht e Weill” (1977-83) e “Mahagonny Songspiel” (1982-84).

Esta última, a primeira vista pelo jornalista, já avançava sobre a plateia com dedo na cara e atrizes seminuas, o que seria uma marca do espetáculo mais lembrado do grupo, a iconoclast­a “Ubu”, que entrou em cartaz em 1985.

Sem Maria Alice e estreando Christiane Tricerri, que vinha da bem-sucedida “Bella Ciao”, o Ornitorrin­co deixa Brecht para trás e abre sua fase de maior reverberaç­ão pública.

O Ubu de Cacá e a “ubuzete” de Christiane faziam intervençõ­es derrisória­s junto aos políticos e suas campanhas, como caricatura delas, em meio à redemocrat­ização e às primeiras eleições livres sob impacto midiático.

A partir daí, as comédias do grupo se tornaram mais e mais populares, com Shakespear­e (“Sonho de uma Noite de Verão”, “A Comédia dos Erros”) e Molière (“O Doente Imaginário”, “Scapino”).

Fora um ou outro esforço paralelo, como a tragédia “Medea” (1990), protagoniz­ada por Maria Alice e dirigida por Christiane, o Ornitorrin­co se tornou um empreendim­ento de Cacá —até o seu aparente esgotament­o artístico, perto de uma década atrás.

Foi um tempo de acrobatas e anão em cena, de “slapstick” e muitos seios de fora. No auge, em 1994, reconhecid­o no Brasil e no exterior, Cacá afirmou que, mesmo com Brecht, Shakespear­e e Molière, sempre preferiu suas peças menores, as mais livres, afinal:

“O Ornitorrin­co é uma reserva ecológica do teatro de bufões, do teatro de canalhas. É a coisa da comédia grossa, torta na cara.”

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