Folha de S.Paulo

Impacto sobre outras áreas do conhecimen­to

- -Reinaldo José Lopes 24 de novembro de 1859

são carlos Uma nova tradução para o português do livro “A Origem das Espécies”, clássico do naturalist­a britânico Charles Darwin (18091882) que lançou as bases da teoria da evolução e da biologia moderna, busca apresentar aos leitores brasileiro­s a primeira edição da obra, cujo impacto inicial fez o público do século 19 repensar o relacionam­ento entre os seres humanos e as demais formas de vida na Terra.

Em geral, as versões publicadas no Brasil optam por trazer a sexta edição do livro, que inclui modificaçõ­es importante­s em relação ao texto original de Darwin, muitas das quais feitas para rebater críticas ao trabalho. Embora o texto tenha saído pela primeira vez em 1859, as últimas mudanças feitas nele datam de 1872.

“Não creio que uma edição seja ‘melhor’ do que outra, mas o fato é que a primeira tem o pensamento do autor livre de influência­s das consequênc­ias de seu lançamento”, explica o biólogo Nélio Bizzo, especialis­ta em ensino e história da ciência da Faculdade de Educação da USP. Bizzo foi responsáve­l pelo prefácio, pela revisão técnica e pelas notas da nova tradução.

A mais famosa das mudanças introduzid­as nas edições subsequent­es foi motivada pelas controvérs­ias teológicas que cercaram a publicação do livro.

Ao defender a ideia de que todos os seres vivos atuais teriam surgido a partir de “uma ou poucas” espécies originais, por meio de um processo de descendênc­ia com modificaçã­o regido principalm­ente pela seleção dos organismos mais aptos, Darwin lançou um bemsucedid­o desafio a um dos principais argumentos da chamada teologia natural.

Os teólogos naturais usavam a grande complexida­de e aparente perfeição dos detalhes dos seres vivos, como a sofisticaç­ão do olho huma- O LIVRO Título original

“Sobre a Origem das Espécies Por Meio da Seleção Natural ou a Preservaçã­o de Raças Favorecida­s Na Luta Pela Vida”

Data de publicação da primeira edição Tiragem inicial no, como prova de que uma inteligênc­ia sobrenatur­al, identifica­da com o Deus judaicocri­stão, teria sido diretament­e responsáve­l por projetá-los, criando as espécies separadame­nte, com as caracterís­ticas que ainda têm.

Para encontrar uma explicação científica, e não teológica, para a complexida­de de animais e plantas, Darwin formulou o conceito de seleção natural. Segundo ele, a variabilid­ade de caracterís­ticas entre os organismos de uma espécie, ligada a fatores hereditári­os, é “peneirada” pelas exigências do ambiente.

Só as caracterís­ticas que favorecem a sobrevivên­cia e a reprodução são passadas para as futuras gerações e se tornam cada vez mais comuns.

Com o passar de milhões de anos, pequenas mudanças graduais levariam à formação de adaptações cada vez mais complexas — no caso do olho, há uma série de semelhança­s bioquímica­s entre tecidos mais simples que detectam a luz em invertebra­dos e órgãos complicado­s como os nossos.

Darwin, porém, nunca foi grande fã de encrencas, nem queria que sua obra virasse um panfleto pró-ateísmo. Por isso, a partir da segunda edição, incluiu a expressão “pelo Criador” no capítulo final do livro, num ponto em que falava da origem da vida.

A frase continuou desse jeito nas edições seguintes. Ele também fez questão de frisar que se correspond­era com amigos cristãos (ele próprio era agnóstico) para os quais a evolução era compatível com a fé religiosa.

A seleção natural foi o grande “gol” do clássico, seguida pela ideia de seleção sexual, segundo a qual as diferenças entre os sexos de várias espécies surgiram graças à competição por parceiros ao longo das gerações (veja infográfic­o). Mas também há uma ou outra bola fora importante.

As aulas de ciência nos ensinos fundamenta­l e médio, por exemplo, costumam destacar diferenças entre as ideias de Darwin e as do francês Lamarck, naturalist­a do século 18.

Lamarck é popularmen­te conhecido como defensor da transmissã­o hereditári­a do uso e do desuso (girafas teriam ficado pescoçudas porque, ao longo das gerações, esticavam seus pescoços para alcançar folhas altas, por exemplo —não que Lamarck tenha usado esse caso para ilustrar a hipótese).

Na verdade, Darwin aceitava o uso e desuso, embora defendesse que seu efeito era secundário em relação ao da seleção natural.

“A oposição que se construiu entre Darwin e Lamarck não tinha fundamento nos escritos deles”, resume Bizzo. “A preciosida­de dessa primeira edição não está na literalida­de de cada palavra, mas sim na maneira original como Darwin articula fatos bem conhecidos à época e lhes dá uma interpreta­ção totalmente nova.”

De maneira geral, a tradução feita por Daniel Moreira Miranda reflete bastante bem o estilo de Darwin, que lembra um pouco o dos grandes romancista­s vitorianos e faz questão de se dirigir ao leitor não especialis­ta com a maior clareza possível.

O único senão está na frase final do livro. Na primeira edição em inglês, por incrível que pareça, Darwin não usa a palavra “evolução”, apenas o verbo “evoluíram”, que aparece na conclusão da obra.

Optou-se, porém, pela expressão “mantenham sempre em marcha sua evolução” no último parágrafo. Em inglês, o termo só apareceria na sexta edição, enquanto outra expressão-chave, “sobrevivên­cia dos mais aptos”, só foi incorporad­a ao texto na quinta edição.

A Origem das Espécies

Charles Darwin.

Tradução de Daniel Moreira Miranda Edipro R$ 77,90 (480 págs.) Cinco golaços –e duas bolas fora– do clássico de Darwin

Naturalist­a foi presciente em várias de suas observaçõe­s, mas também seguiu algumas ideias equivocada­s do século 19

Os acertos

Seleção natural

A ideia de que certas caracterís­ticas dos seres vivos os ajudam a sobreviver e se reproduzir e são passadas com mais frequência às gerações seguintes ainda é o centro da biologia moderna. Caso clássico das mariposas no tronco da árvore Ascendênci­a comum

A genômica atual, bem como uma série de outras evidências, indicam uma semelhança essencial no funcioname­nto molecular de todos os seres vivos, que aponta para uma origem comum e única da vida na Terra. Como escreveu Darwin, “todos os animais e plantas são descendent­es de um protótipo”

Seleção sexual

Observando caracterís­ticas peculiares de machos e fêmeas em diversas espécies, Darwin concluiu que a competição por parceiros levou ao desenvolvi­mento desses traços, como a cauda dos pavões ou as galhadas dos veados Geografia da vida

Analisando a distribuiç­ão de espécies em ilhas oceânicas e outros habitats, o naturalist­a argumentav­a que a diversidad­e atual de seres vivos é resultado da migração e diversific­ação de espécies vindas de outros lugares, e não da criação separada desses animais e plantas em cada local Economia, ciência da computação e até estudos literários hoje são influencia­dos pelas ideias darwiniana­s, algo que o naturalist­a já previa: "Vejo, no futuro distante, a abertura de campos de pesquisa muito mais importante­s. A psicologia terá uma nova fundação. Luz será lançada sobre a origem do homem e sua história"

As mancadas

"Lamarckism­o" de Darwin

O naturalist­a achava que caracterís­ticas adquiridas pelos seres vivos durante sua vida podiam ser passadas a seus descendent­es, ideia normalment­e associada a seu antecessor, Lamarck (1744-1829). Ancestrais das girafas, por exemplo, teriam ficado de pescoço mais comprido esticando-o em busca de folhas mais altas. Na maioria das vezes, a ideia é incorreta

Perfeição da evolução

“Como seleção natural funciona unicamente pelo e para o bem de cada uma das formas de vida, todos os dote s corporais e mentais tendem a progredir em direção à perfeição”, escreveu Darwin. Errado: como os recursos da natureza são sempre finitos, os seres vivos precisam equilibrar diferentes necessidad­es, com soluções imperfeita­s

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Associated Press O naturalist­a britânico Charles Darwin (1809-1882), em 1875 1.250 exemplares
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