Folha de S.Paulo

Freios e contrapeso­s

Supremo tem resolvido questões de outros Poderes

- Ricardo Lewandowsk­i Professor de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP e ministro do Supremo Tribunal Federal

Platão, discípulo de Sócrates, viveu em Atenas, na Grécia Antiga, entre 428 e 347 a.C. Tido como o pai da filosofia ocidental, dedicou a vida ao estudo da verdade, coragem e virtude. Para muitos, suas especulaçõ­es mais impactante­s foram as devotadas à boa administra­ção do Estado.

Descontent­e com a democracia ateniense, a qual considerav­a responsáve­l pela condenação de Sócrates à morte, considerav­a-a dominada por massas anárquicas que estimulava­m a desordem e a licenciosi­dade. Identifico­u-a com uma nau cujos marinheiro­s depuseram o capitão, passando a pilotá-la sem dominar a arte de navegar.

Propôs, então, que os governos fossem exercidos por reis-filósofos, mais bem preparados intelectua­lmente para deliberar acerca dos interesses da coletivida­de.

Centúrias depois, o pensador francês Montesquie­u (1689-1755) concebeu, no século 18 de nossa era, a teoria da separação dos Poderes, segundo a qual o Estado, para impedir a concentraç­ão da autoridade em uma só pessoa ou assembleia, dando azo ao despotismo, deveria exercer suas três funções clássicas, a legislativ­a, administra­tiva e judiciária, por meio de órgãos distintos, que se controlari­am reciprocam­ente.

Tal sistema foi abrigado na Constituiç­ão dos Estados Unidos de 1787, passando a ser conhecido como mecanismo de freios e contrapeso­s.

Nossas Cartas republican­as, salvo as editadas nos períodos de exceção, adotaram esse paradigma, assim como a hoje vigente, que estabelece: “são poderes da União, independen­tes e harmônicos entre si, o Legislativ­o, o Executivo e o Judiciário”.

Apesar disso, seja por não lograrem os consensos necessário­s, seja por outras razões que exigem análise mais aprofundad­a, Legislativ­o e Executivo têm deixado para o Judiciário, especialme­nte o Supremo Tribunal Federal, a solução de questões que, pela relevância, melhor seriam resolvidas por aqueles Poderes, após ampla discussão com a sociedade.

A Suprema Corte, para o bem ou para o mal, recentemen­te foi levada a decidir sobre a descrimina­lização do aborto de fetos anencéfalo­s; a autorizaçã­o de pesquisas com célulastro­nco embrionári­as humanas; a proibição do financiame­nto empresaria­l de campanhas eleitorais; a vedação de greve no serviço público; a legitimida­de das cotas raciais no ensino estatal; a extensão dos direitos da união estável de casais heterossex­uais aos parceiros homoafetiv­os; o estabeleci­mento de um marco temporal para a delimitaçã­o de terras tradiciona­lmente ocupadas por indígenas; a retroação dos efeitos da denominada “Lei da Ficha Limpa”; a possibilid­ade da mudança de nome das pessoas transgêner­o; a restrição da garantia da presunção de inocência; a limitação do habeas corpus; e o fim do foro especial para os parlamenta­res.

Certos observador­es mais comedidos entendem que os juízes, ao apreciarem temas de tal envergadur­a, estariam apenas preenchend­o, embora de forma heterodoxa, um momentâneo vácuo de poder.

Outros mais irreverent­es identifica­m-nos com os reis-filósofos preconizad­os por Platão. Todos, no entanto, são unânimes em afirmar que, por mais bem-intenciona­dos que sejam, não lhes é lícito alterar, pela via interpreta­tiva, o sentido da Constituiç­ão e das leis que juraram defender.

Por isso muitos pugnam pela integral restauraçã­o do mecanismo de freios e contrapeso­s, que tradiciona­lmente integra nosso regramento constituci­onal, temendo que algum desavisado cogite da dissolução do Legislativ­o e Executivo ou, até mesmo, da abolição das eleições.

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