Folha de S.Paulo

Mãe adotiva busca há 6 anos registro e fim de desconfian­ça

Caso se arrasta na Justiça em meio a recursos da família biológica do garoto

- -Ricardo Kotscho

são paulo “Ele é meu filho, mas não é”, diz a mãe adotiva de F., a comissária de bordo Adriana Mariani, 47, que há seis anos recebeu a guarda provisória do menino e até hoje não conseguiu os documentos da Justiça para poder registrá-lo em seu nome.

Ao longo do doloroso processo, Adriana criou e lidera um grupo de cerca de outras 40 mães adotivas que vivem o mesmo drama para o cumpriment­o de lei de outubro do ano passado que estabelece em 120 dias o prazo máximo para a ação de adoção, “prorrogada uma única vez por igual período, mediante decisão fundamenta­da da autoridade judiciária”.

Por enquanto, essa lei é válida só no Rio de Janeiro, onde corre o processo de F. —ainda não cumprida. No restante do país, onde milhares de famílias enfrentam a mesma demora, não há nem prazo.

“Eu não sou o C., eu sou o F.”, tem que repetir o menino que completará sete anos em julho e até hoje tem dois nomes nos documentos, o que provoca uma série de constrangi­mentos em escolas, consultóri­os médicos e hospitais, enquanto não é fornecida a nova certidão de nascimento.

Nestas situações em que F. é obrigado a corrigir seu próprio nome, a mãe adotiva tem que enfrentar a burocracia e olhares desconfiad­os.

“Todo mundo ao redor me olha como se eu estivesse fazendo coisa errada, sequestran­do meu próprio filho.”

Em meio a esse imbróglio, embora trabalhe numa companhia aérea, ela não pode viajar com o filho para o exterior nem mesmo batizá-lo na Igreja Católica.

“Meu filho, legalmente, não existe. Esta é uma mágoa grande que eu tenho, mas o amor que eu sinto supera tudo. Nossas famílias precisam ser reconhecid­as, nossos filhos respeitado­s. A tortura psicológic­a que nossos filhos suportam durante essa espera pela mudança do nome é desumana, sofrida e totalmente desnecessá­ria”, diz.

A luta de Adriana para adotar um filho começou em 2010 Há um descompass­o entre a procura dos futuros pais e a realidade das crianças disponívei­s para adoção no Brasil

Crianças e adolescent­es

à espera de adoção quando foi habilitada para entrar na fila do Cadastro Nacional de Adoção. Depois de uma espera de três anos, cinco meses e 12 dias, que ela chama de “gestação do coração”, a tão esperada notícia chegou: havia

Perfil procurado por pretendent­es um bebê disponibil­izado para adoção numa creche no interior do Rio de Janeiro.

Mesmo morando ao lado do aeroporto de Congonhas, numa boa casa de classe média do Planalto Paulista junto com a mãe e uma irmã, ela resolveu ir de carro, onde já tinha colocado uma cadeirinha de bebê. “Meu filho é tão especial que nasceu por email”, lembra Adriana, após sete tentativas de inseminaçã­o in vitro. “Senti muita emoção, como se estivesse em trabalho de parto. Eu sempre quis ser mãe desde criança.”

Na creche havia 16 crianças e um único bebê, como ela queria: um menino de nove meses, levado para lá quando tinha apenas quatro dias porque a mãe era soropositi­va. Estava deitado de bruços, só com os pezinhos para fora do cobertor. Adriana começou a chorar, a garganta fechou e logo que o pegou no colo sentiu que tinha encontrado, finalmente, o filho tão desejado.

Ansiosa para levá-lo para casa, antes teve que passar por uma audiência com a juíza para formalizar a guarda provisória, que, na prática, se tornou permanente até agora.

Parecia que seria fácil, mas era só o início do intermináv­el processo na Justiça para lhe dar o direito de registrar o filho. “Ele conquistou todo mundo na hora que chegou aqui em casa”, conta dona Elisabeth, a feliz vovó Bete de F., seu terceiro neto. Falante e alegre, o menino se diverte com o fotógrafo e faz pose de artista. Quando lhe perguntam o que quer ser quando crescer, responde: “Youtuber e designer de games”.

Na sexta-feira (25), quando é celebrado o Dia Nacional da Adoção, Adriana ainda não terá todos os motivos para comemorar. Eles querem mesmo a certidão de F. com o sobrenome Mariani, quando esses descendent­es de italianos pretendem fazer uma grande festa, com muita massa, bolo de chocolate e brigadeiro­s, todas as comidas que ele adora.

Nesse dia, Adriana pretende criar uma fundação com o nome do menino “para ajudar outras famílias a concluírem seus processos definitiva­mente, sem tanto sofrimento e desespero”.

São casos como os de Renata Rose, mãe de três filhos adotivos que aguarda há oito anos o final do processo de adoção, e de Ângela Patrícia, mãe de uma menina com a idade de F., que aguarda também desde 2012.

Adriana lembra o caso de uma família que só conseguiu a tão sonhada certidão depois de esperar por dez anos. Guarda numa pasta a resposta que recebeu do Conselho de Defesa da Criança e do Adolescent­e do Rio de Janeiro a um apelo dramático enviado em nome das mães adotivas.

“Infelizmen­te, a demora do andamento processual é algo recorrente nas Varas da Infância e Juventude, que desconside­ram a prioridade absoluta na tramitação desses processos, inexistind­o órgão especializ­ado em infância tanto nos tribunais de Justiça como nos tribunais superiores.”

Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, o processo corre em segredo de justiça, razão pela qual não pode dar mais informaçõe­s sobre o caso de Adriana. Contudo o TJ afirma que a sentença, proferida em 2014, ainda não transitou em julgado porque os pais biológicos de C. apresentar­am um recurso, ainda sob análise.

Mãe de fato, mas ainda não de direito, como ela diz, Adriana compensa com afeto a falta de documentos: “Falo pra ele ‘te amo’ mil vezes por dia. Mas e se eu morrer? O que vai ser desse menino, se nem com a avó ele poderia ficar?”

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Jorge Araujo/Folhapress A comissária de bordo Adriana Mariani, 47, que recebeu guarda provisória de menino há seis anos, mas ainda não conseguiu documentos da Justiça para registrá-lo

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