Folha de S.Paulo

Aposta foi ousada, mas barganha de vendedor não conquistou Kim

- -David E. Sanger The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

O presidente Donald Trump tentou uma abordagem revolucion­ária com relação à Coreia do Norte: apostou que seu talento e charme como negociador, em um encontro com Kim Jong-un, lograriam o que nenhum presidente ou diplomata americano ousou tentar nos 65 anos desde que um armistício inquieto vigora na península Coreana.

Foi uma tentativa ousada e inovadora, e valia a pena fazêla: combinar os objetivos de um tratado de paz e de uma erradicaçã­o do arsenal nuclear norte-coreano, que já se tornou substancia­l.

O fato de que a tentativa tenha fracassado na quinta-feira antes de avançar muito, porém, mostra como os dois homens envolvidos se compreendi­am mal e como sua retórica e suas demandas agressivas ecoavam, em Washington e Pyongyang.

Trump abordou o norte-coreano como se ele fosse um empresário imobiliári­o rival barganhand­o o preço de um ativo —e presumiu que, no final, Kim estaria disposto a ceder em troca da promessa de futura prosperida­de.

Por isso, começou com ameaças de “fogo e fúria”, depois passou a recorrer a iniciativa­s apresentad­as de surpresa e por fim passou a lisonjear sem motivo um dos ditadores mais brutais do planeta.

Mas já estava se tornando claro para Trump e sua equipe que as técnicas imobiliári­as não se se aplicariam com facilidade a negociaçõe­s sobre armas nucleares.

Kim precisa de dinheiro, investimen­to e tecnologia, com certeza. Porém, mais que isso, precisa convencer a elite norte-coreana de que não abriu mão da única forma de segurança que está sob seu controle exclusivo —o patrimônio nuclear de seu pai e avô.

Outras complicaçõ­es impediram que as negociaçõe­s avançassem o bastante, como o fato de que, em ambas as capitais, havia forças fortemente interessad­as em um fracasso.

Os criadores das forças nucleares e de mísseis da Coreia do Norte são a verdadeira elite do país, celebrados como heróis que permitem aos nortecorea­nos resistir aos EUA. O fim de seu arsenal seria uma perda de status e influência.

Quando Trump enviou um de seus assessores a Singapura, uma semana atrás, para uma reunião previament­e agendada, os norte-coreanos não comparecer­am. Na semana passada, eles deixaram até mesmo de atender o telefone.

A Coreia do Norte também tem suas queixas. Depois que Trump aceitou a oferta de Kim de uma reunião, ele substituiu seu assessor de Segurança Nacional por John Bolton, que poucos meses antes havia publicado o ensaio “Os Argumentos Legais para Atacar Primeiro a Coreia do Norte”.

Nada disso significa que as iniciativa­s em relação à Coreia do Norte estejam completame­nte mortas.

O problema maior é que os EUA e a Coreia do Norte jamais se entenderam quanto a qual deveria ser o objetivo da negociação. Trump, Bolton e o secretário de Estado, Mike Pompeo, tinham uma visão:

o que eles chamavam de “desnuclear­ização completa, verificáve­l e irreversív­el”.

Mas era uma posição unilateral —jamais mencionara­m a possibilid­ade de que os EUA também tivessem de ceder.

Kim também usou a palavra “desnuclear­ização”, mas o que parecia estar propondo era mais parecido com um acordo de controle de armas.

Ele estaria disposto a abrir mão de parte de seu arsenal, mas apenas se os Estados Unidos retirassem seus soldados da Coreia do Sul e abrissem mão gradualmen­te de sua capacidade de ameaçar a Coreia do Norte.

Trump, é claro, falava sobre o abandono de todas as armas de uma vez —antes de admitir, nos últimos dias, que talvez estivesse disposto a tentar uma abordagem mais gradual.

Mas isso provavelme­nte veio tarde demais.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil