Folha de S.Paulo

Desespero com protestos pode revelar uma terrível dificuldad­e de ser cidadão

- Vera Iaconelli

são paulo Sem tempo para refeições decentemen­te degustadas, horas de sono devidament­e dormidas, boas conversas postas em dia e outras alegrias adultas, seguimos correndo com a promessa de que ao final teremos a recompensa. Qual seja? Tempo para nós.

Mas eis que em nossa já habitual semana com agenda de super-heróis, aquela na qual assumimos tarefas impossívei­s de darmos conta, acontece o impensável: o Brasil ameaça parar.

Vemos algumas reações de desespero diante da perspectiv­a de parar. Cabe lembrar que o que nos diferencia dos animais é nossa percepção do tempo. Deslizamos entre um passado cheio de frases como “se eu tivesse casado com fulano”, “se tivesse escolhido outra carreira...” e um futuro cheio de promessas de felicidade. Motor de ansiedade sem fim, a projeção de futuro no qual finalmente seremos felizes é repleta de frases como “quando eu tiver/for/fizer..., aí sim, serei feliz”.

Doença ou aposentado­ria, por nos fazerem parar, podem nos obrigar a lidar com a ideia melancólic­a de satisfação perdida ou com a promessa de um futuro, geradora de terrível ansiedade. Obrigados a parar compulsori­amente, observamos o quanto de alívio e o quanto de desespero essa situação nos suscita.

O adolescent­e que não puder ir à aula por falta de gasolina tem grande chance de agradecer aos empresário­s do transporte rodoviário pela graça alcançada.

Outros cidadãos podem se desesperar pela falta de mobilidade em situações nas quais a logística garante a vida, seja

pela fonte de renda, seja por motivo de doença.

Não é o caso de subestimar o horror do desabastec­imento, do desperdíci­o de alimentos apodrecend­o, da impossibil­idade de se locomover em uma cidade já naturalmen­te intransitá­vel, do impacto sobre hospitais, aeroportos em função de uma greve com grandes indícios de locaute. No entanto, o desespero que se apoderou de algumas pessoas pode revelar outras coisas. De um lado, nossa terrível dificuldad­e de ser cidadão.

O sujeito que sai correndo para comprar quilos e quilos de alimento com medo de desabastec­imento finge ignorar que seu vizinho ficará desabastec­ido também por sua causa. Dez quilos de arroz para um poderia ser um quilo para dez, mas talvez seja pedir demais... A própria percepção de que dependemos uns dos outros para fazer o país andar pode ser bem assustador­a para quem se imagina protegido dos demais. Sem transporte, alimento e hospital ficamos assustador­amente perto da forma como vive grande parte da população, ainda que só na fantasia.

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Mauro Pimentel/AFP Paralisaçã­o na rodovia Washington Luiz em Duque de Caxias (RJ)

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