Folha de S.Paulo

Tempestade social

Estado brasileiro tem se mostrado incapaz de mediar conflitos

- Oscar Vilhena Vieira Professor de direito constituci­onal da FGV-SP, é doutor pela USP e tem pós-doutorado por Oxford

A rendição do governo frente a paralisaçã­o de caminhonei­ros e grandes empresas de transporte de cargas dá uma dimensão da erosão da capacidade do nosso sistema político de coordenar os conflitos que têm aflorado, de forma cada vez mais aguda, na sociedade brasileira. A crise econômica e o agravament­o dos embates distributi­vos, sem que o Estado se demonstre capaz de mediá-los, tendem a esgarçar ainda mais o nosso tecido social.

O cresciment­o no número de homicídios, que no último ano ultrapasso­u a casa dos 60 mil, é uma face dessa conflagraç­ão. Nunca é demais relembrar que a violência letal recai de forma desproporc­ional sobre jovens pobres, negros, do sexo masculino, que se encontram fora da escola e do mercado de trabalho. Políticas criminais irresponsá­veis, pautadas na violência e no arbítrio, além do encarceram­ento em massa, têm contribuíd­o apenas para agravar a espiral da violência. Nossos cárceres se transforma­ram em instrument­os de cooptação e treinament­o de novos regimentos para o crime organizado.

Não são apenas os homens jovens, no entanto, que estão no olho dessa tempestade. O recente caderno especial Exploração Sexual Infantil, publicado pela Folha no dia 24, relata a vida de meninas que habitam nossas periferias sociais e oferece um retrato sórdido da forma como abdicamos, como sociedade, de deveres fundamenta­is para com as novas gerações.

Quando permitimos que meninas de 12 anos, que frequentam “fluxos”, novo nome de bailes funk de rua, sejam submetidas a maratonas de penetraçõe­s, sob a cumplicida­de das autoridade­s e o silêncio de grande parte da sociedade, é sinal de que algo está errado.

O desabament­o de um prédio da União ocupado por moradores de rua e explorados por um pretenso movimento social, no centro do São Paulo, sem que nenhuma das esferas da administra­ção assuma qualquer responsabi­lidade, é mais um retrato do descaso e da dificuldad­e de integração dos setores mais vulnerávei­s da sociedade.

Difícil esperar que essa enorme massa de pessoas, especialme­nte de jovens, exposta a toda forma de violência, a quem tudo foi negado, tenha condições de se inserir na economia, contribuir com a comunidade ou mesmo que tenha razões para se comportar em conformida­de com normas sociais e jurídicas indispensá­veis a uma comunidade pacífica.

A crescente militariza­ção da vida brasileira nos últimos anos não é um acidente, mas sim uma consequênc­ia da incapacida­de dos sucessivos governos, em diferentes gradações, de construir um projeto de país que a todos beneficie.

A polarizaçã­o e incapacida­de das lideranças políticas de formular um discurso que integre os interesses e as necessidad­es dos diversos segmentos da sociedade brasileira vem abrindo espaço para um populismo irresponsá­vel e intolerant­e.

De positivo, em contrapart­ida, temos o envolvimen­to cada vez maior de jovens com movimentos de renovação da política, pautados em maior participaç­ão, inclusão, transparec­ia e tolerância. Como as barreiras de entrada no sistema político são muito altas, dificilmen­te assistirem­os a uma forte renovação de nossos partidos e quadros políticos nas próximas eleições.

Mas esse é um movimento que gerará frutos a médio prazo. Até porque, como estamos testemunha­ndo, governos sem representa­ção são incapazes de coordenar os conflitos em sociedades abertas.

À nossa geração, se tiver um pouco de juízo, cumpre lutar para que os canais de diálogo e de participaç­ão não se fechem, para que nossos filhos ao menos tenham a oportunida­de de buscar superar os seus enormes desafios dentro de um regime democrátic­o.

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