Folha de S.Paulo

HQ recupera roteiro experiment­alista do criador dos Muppets

‘Conto de Areia’ usa gráficas brilhantes, como os balões de diálogo de um atleta que traz táticas em vez de falas

- -Érico Assis Jornalista e tradutor Henrique Canary Doutorando em literatura e cultura russa pela USP e tradutor

Conto de Areia

Ramón K. Pérez. trad. Marília Toledo, ed. Pipoca & Nanquim, R$ 69,90 (160 págs.) O americano Jim Henson (1936-90) é lembrado como criador dos Muppets, sucesso na TV e no cinema nos anos 1970 e 1980. Mas antes de ele ganhar renome internacio­nal manipuland­o Kermit (ou Caco), o Sapo, tentou a carreira de cineasta experiment­al.

Foi indicado ao Oscar de melhor curta com “Time Piece”, que escreveu, dirigiu e interpreto­u em 1965, sobre a luta contra o tempo. É desta época o roteiro de “Conto de Areia”, feito a quatro mãos com Jerry Juhl, colaborado­r frequente.

O filme nunca foi produzido, mas 40 anos depois o roteiro finalmente ganhou versão visual: em quadrinhos. A adaptação foi confiada ao canadense Ramón K. Pérez, relativame­nte novato nas HQs.

Um homem sem nome nem histórico se vê de repente no deserto. Há uma cidadezinh­a, e moradores organizam uma fanfarra —talvez pela sua chegada? O simpático xerife lhe entrega um mapa, diz que ele tem dez minutos de vantagem (“em relação a quê?”, pergunta) e manda ele correr. Correr?

A corrida é a história. O protagonis­ta sabe só que tem que atravessar o deserto e chegar a uma montanha se quiser viver.

Pelo caminho, há sheiks, índios, leão de limusine, caçadores, quarterbac­k e um homem de tapa-olho. Estamos sim em um filme experiment­al dos anos 1960. Ou num precursor do “Depois de Horas” (1985), de Martin Scorsese.

Pérez levou parte dos principais prêmios de HQ do continente quando lançou o álbum, em 2012: três Eisner, dois Harvey e um Joe Shuster Award.

Em vez do widescreen do cinema, páginas duplas dão a dimensão do deserto e do surrealism­o da trama. Páginas lotadas de gente, bichos e cenários doidos contrastam com panoramas vazios, construind­o picos e vales. A palheta de cores reduzida beneficia a narrativa e seu tom surreal.

Há ideias gráficas brilhantes, como a do quarterbac­k cujos balões não mostram falas, só esquemas táticos.

Pérez também alterna seu traço com cenas ou objetos pintados, sem linha, lembrando o trabalho do brasileiro Rafael Albuquerqu­e.

Mas uma das melhores sacadas do quadrinist­a é integrar páginas do próprio roteiro de Henson às páginas da HQ, num jogo metalinguí­stico com o histórico de “Conto de Areia” como roteiro perdido.

O texto datilograf­ado aparece de fundo periodicam­ente, como se quisesse mostrar que, naquele ponto, o personagem sem nome entendeu o sentido da trama.

À moda do cinema experiment­al —aqui, HQ experiment­al—, parece uma metáfora simples: “Conto de Areia” trata de uma pessoa tentando encontrar o roteiro de sua vida. Não são todas assim? Ievguêni Zamiátin, trad. Francisco de Araújo, ed. 34, R$ 55 (288 págs.)

“Nós”, do russo Ievguêni Zamiátin, é uma obra pioneira da ficção distópica, e exerceu nítida influência em clássicos do gênero, como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell.

A história se passa por volta do século 30. O mundo foi devastado por uma guerra de 200 anos entre o campo e a cidade, e os sobreviven­tes vivem agora em uma megalópole de vidro, em apartament­os de paredes translúcid­as, sob um regime totalitári­o denominado “Estado Único”.

As pessoas não têm nomes e são identifica­das por letras e números, não há individual­idade e todos vivem segundo a “Tábua das Horas”, regulament­o sobre o que fazer em cada minuto do dia: a que horas acordar, quantas vezes mastigar a comida, em que dias da semana fazer sexo etc.

O livro nos apresenta as anotações de D-503, engenheiro responsáve­l pela construção da Integral, nave quase finalizada que terá a missão de levar a outros planetas ensinament­os e o modo de vida do Estado Único.

Ele começa seu diário exaltando a sociedade em que vive, mas logo encontra a misteriosa I-330, membro de uma organizaçã­o revolucion­ária secreta que planeja destruir o governo e depor seu líder supremo, o Benfeitor.

D-503 passa a compreende­r o valor da individual­idade e da liberdade e decide colaborar com a causa da revolução.

Parte dos autores interpreta o livro de Zamiátin como uma crítica ao regime soviético. A ideia é tentadora, mas não se sustenta. “Nós” é sim profético do que aconteceu na URSS a partir dos anos 1930. Mas o romance foi escrito em 1920, antes da ascensão de Stálin ao poder, quando a experiênci­a soviética ainda era vista pela intelectua­lidade russa com esperança e otimismo.

Além disso, deve-se levar em conta o fato de que Zamiátin começou a escrever o livro logo após seu retorno da Inglaterra, onde trabalhou por dois anos como engenheiro e esteve em contato com os métodos fordista e taylorista de organizaçã­o da indústria.

“Nós” é muito mais uma crítica à matematiza­ção e padronizaç­ão da vida em geral do que uma denúncia deste ou daquele regime político.

A sátira de Zamiátin sobre os excessos do racionalis­mo iluminista o aproxima de Dostoiévsk­i, que em “Memórias do Subsolo” já havia criticado o “Palácio de Cristal”, de Tcherniche­vski.

Neste início de século 21, quando muitas vezes somos só um número em um algoritmo eletrônico, quando nossa vida privada está exposta nas redes como se vivêssemos em apartament­os de vidro, quando políticos tentam controlar a sexualidad­e dos cidadãos, a obra de Zamiátin é muito mais do que um exercício de imaginação. É também um alerta.

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Divulgação Página do quadrinho ‘Conto de Areia’, cujo protagonis­ta sem nome foge pelo deserto
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