HQ recupera roteiro experimentalista do criador dos Muppets
‘Conto de Areia’ usa gráficas brilhantes, como os balões de diálogo de um atleta que traz táticas em vez de falas
Conto de Areia
Ramón K. Pérez. trad. Marília Toledo, ed. Pipoca & Nanquim, R$ 69,90 (160 págs.) O americano Jim Henson (1936-90) é lembrado como criador dos Muppets, sucesso na TV e no cinema nos anos 1970 e 1980. Mas antes de ele ganhar renome internacional manipulando Kermit (ou Caco), o Sapo, tentou a carreira de cineasta experimental.
Foi indicado ao Oscar de melhor curta com “Time Piece”, que escreveu, dirigiu e interpretou em 1965, sobre a luta contra o tempo. É desta época o roteiro de “Conto de Areia”, feito a quatro mãos com Jerry Juhl, colaborador frequente.
O filme nunca foi produzido, mas 40 anos depois o roteiro finalmente ganhou versão visual: em quadrinhos. A adaptação foi confiada ao canadense Ramón K. Pérez, relativamente novato nas HQs.
Um homem sem nome nem histórico se vê de repente no deserto. Há uma cidadezinha, e moradores organizam uma fanfarra —talvez pela sua chegada? O simpático xerife lhe entrega um mapa, diz que ele tem dez minutos de vantagem (“em relação a quê?”, pergunta) e manda ele correr. Correr?
A corrida é a história. O protagonista sabe só que tem que atravessar o deserto e chegar a uma montanha se quiser viver.
Pelo caminho, há sheiks, índios, leão de limusine, caçadores, quarterback e um homem de tapa-olho. Estamos sim em um filme experimental dos anos 1960. Ou num precursor do “Depois de Horas” (1985), de Martin Scorsese.
Pérez levou parte dos principais prêmios de HQ do continente quando lançou o álbum, em 2012: três Eisner, dois Harvey e um Joe Shuster Award.
Em vez do widescreen do cinema, páginas duplas dão a dimensão do deserto e do surrealismo da trama. Páginas lotadas de gente, bichos e cenários doidos contrastam com panoramas vazios, construindo picos e vales. A palheta de cores reduzida beneficia a narrativa e seu tom surreal.
Há ideias gráficas brilhantes, como a do quarterback cujos balões não mostram falas, só esquemas táticos.
Pérez também alterna seu traço com cenas ou objetos pintados, sem linha, lembrando o trabalho do brasileiro Rafael Albuquerque.
Mas uma das melhores sacadas do quadrinista é integrar páginas do próprio roteiro de Henson às páginas da HQ, num jogo metalinguístico com o histórico de “Conto de Areia” como roteiro perdido.
O texto datilografado aparece de fundo periodicamente, como se quisesse mostrar que, naquele ponto, o personagem sem nome entendeu o sentido da trama.
À moda do cinema experimental —aqui, HQ experimental—, parece uma metáfora simples: “Conto de Areia” trata de uma pessoa tentando encontrar o roteiro de sua vida. Não são todas assim? Ievguêni Zamiátin, trad. Francisco de Araújo, ed. 34, R$ 55 (288 págs.)
“Nós”, do russo Ievguêni Zamiátin, é uma obra pioneira da ficção distópica, e exerceu nítida influência em clássicos do gênero, como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell.
A história se passa por volta do século 30. O mundo foi devastado por uma guerra de 200 anos entre o campo e a cidade, e os sobreviventes vivem agora em uma megalópole de vidro, em apartamentos de paredes translúcidas, sob um regime totalitário denominado “Estado Único”.
As pessoas não têm nomes e são identificadas por letras e números, não há individualidade e todos vivem segundo a “Tábua das Horas”, regulamento sobre o que fazer em cada minuto do dia: a que horas acordar, quantas vezes mastigar a comida, em que dias da semana fazer sexo etc.
O livro nos apresenta as anotações de D-503, engenheiro responsável pela construção da Integral, nave quase finalizada que terá a missão de levar a outros planetas ensinamentos e o modo de vida do Estado Único.
Ele começa seu diário exaltando a sociedade em que vive, mas logo encontra a misteriosa I-330, membro de uma organização revolucionária secreta que planeja destruir o governo e depor seu líder supremo, o Benfeitor.
D-503 passa a compreender o valor da individualidade e da liberdade e decide colaborar com a causa da revolução.
Parte dos autores interpreta o livro de Zamiátin como uma crítica ao regime soviético. A ideia é tentadora, mas não se sustenta. “Nós” é sim profético do que aconteceu na URSS a partir dos anos 1930. Mas o romance foi escrito em 1920, antes da ascensão de Stálin ao poder, quando a experiência soviética ainda era vista pela intelectualidade russa com esperança e otimismo.
Além disso, deve-se levar em conta o fato de que Zamiátin começou a escrever o livro logo após seu retorno da Inglaterra, onde trabalhou por dois anos como engenheiro e esteve em contato com os métodos fordista e taylorista de organização da indústria.
“Nós” é muito mais uma crítica à matematização e padronização da vida em geral do que uma denúncia deste ou daquele regime político.
A sátira de Zamiátin sobre os excessos do racionalismo iluminista o aproxima de Dostoiévski, que em “Memórias do Subsolo” já havia criticado o “Palácio de Cristal”, de Tchernichevski.
Neste início de século 21, quando muitas vezes somos só um número em um algoritmo eletrônico, quando nossa vida privada está exposta nas redes como se vivêssemos em apartamentos de vidro, quando políticos tentam controlar a sexualidade dos cidadãos, a obra de Zamiátin é muito mais do que um exercício de imaginação. É também um alerta.