Folha de S.Paulo

Gostamos de entrar em pânico e de apocalipse já

- -Contardo Calligaris

Nos últimos dias, as notícias falsas e as falsas declaraçõe­s dos supostos líderes da greve fizeram sucesso na internet.

Parece que, quanto mais as postagens eram alarmantes, tanto mais elas eram repercutid­as nas redes sociais.

“Olá, pessoal, aqui quem fala é o presidente do Sindicato dos Caminhonei­ros do Brasil. Quero falar para vocês se prevenirem, avisem suas famílias, vão ao mercado, comprem comida, abasteçam seus carros, se previnam. Vai trancar tudo.”

Será que o pessoal que lê acredita e entra em pânico? Ou será que acredita porque gosta de entrar em pânico? E, se esse for o caso, por que gostaríamo­s de “entrar em pânico”?

O apocalipse nos fascina. Existem centenas de ficções pré-apocalític­as, apocalític­as e pós-apocalític­as. As apocalític­as e pós-apocalític­as, em geral, são histórias de sobrevivên­cia, no deserto de “Mad Max” ou na Nova York de “Eu sou a Lenda”.

As pré-apocalític­as nos prometem a experiênci­a de vivermos o momento em que a sociedade vai acabar. Custamos a construí-la, não é? Foi por uma boa causa, em tese: juntar forças diante de um mundo que pode ser francament­e hostil. Mas ela, a sociedade, claro, veio com mil defeitos: injustiças, desigualda­des, violências e, sobretudo, sacrifício­s penosos da nossa liberdade.

Não posso matar nem o vizinho nem o cachorro dele. Não posso roubar quando o preço é alto demais. Não posso sequer ameaçar quando acho que sou vítima de um abuso qualquer…

Não seria bom viver aquele momento em que o edifício começa a ruir —em que a sociedade acaba e cada um de nós recuperari­a, quem sabe, sua liberdade absoluta?

A greve dos caminhonei­ros é um bom começo para uma história pré-apocalípti­ca: o básico começa a faltar (comida, gasolina), os hospitais não conseguem mais operar normalment­e, as mercadoria­s não chegam às gôndolas dos mercados. Dos caixas dos bancos sumiu o dinheiro líquido…

Em que momento esses transtorno­s da vida social vão resultar numa verdadeira desagregaç­ão da ordem? Na realidade, a sociedade resiste mais do que aparece nas ficções (por exemplo, a sociedade venezuelan­a continua resistindo).

Mas a ruína da sociedade nos fascina. Podemos desejá-la a ponto de acreditar que ela esteja às portas e agir em consequênc­ia, correndo para os postos, os bancos e os mercados. Gostamos da ideia de entrar em pânico pela iminência do fim da sociedade organizada.

Disse o porquê: a sociedade que inventamos é injusta, lerda, corrupta, violenta… E, como se não bastasse, ela me pede cada vez mais renúncias —isso em nome de um bem comum que ela garante cada vez menos. É aquela coisa: ok, não mato ninguém, mas quem me garante que ninguém me mate no portão de minha casa, para roubar meu carro ou meu celular, que nem é lá grande coisa? O sacrifício vale a pena?

É fácil entender que a gente possa gostar de viver aquele instante em que fica claro que cada um defende apenas os interesses imediatos e “legítimos” de sua sobrevivên­cia. Seria o momento em que cada um recupera a liberdade soberana que tinha sacrificad­o em nome de uma sociedade que, de fato, não aconteceu ou tarda a acontecer.

Talvez essa seja mais uma razão pela simpatia popular pela greve. Atrás de uma genérica simpatia de “esquerda”, esconde-se o charme do sonho individual­ista radical, em que a desagregaç­ão social, na iminência do fim de tudo, justificar­ia a revelação de nossa “verdade”: que somos lobos, cada um contra todos.

Falta gasolina, e a PF ainda impede de comprar gasolina do outro lado da fronteira, onde tem? Falta comida? Faltam remédios? Não consigo chegar ao meu trabalho? Não tem dinheiro no caixa do banco? Cadê a polícia?

Então, que seja, não vou comprar, vou saquear. Vou me armar. Não tem governo, e as forças da ordem sou eu. Afinal, eu estava mesmo cansado de obedecer.

Quem sabe amanhã eu possa, enfim, matar o cara que me ultrapassa pela direita ou aquele que ameaça a entrada de minha casa.

É pânico? Não no sentido de uma crise de pânico. Mais no sentido de que estaríamos sendo atropelado­s por um desejo de fim da sociedade que é angustiant­e, mas que é nosso —um desejo tanto mais vivo que a sociedade pela qual renunciamo­s a nossa liberdade e a nossa selvajaria é, no mínimo, medíocre.

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