Folha de S.Paulo

Meu vizinho Godard

- Ruy Castro

rio de janeiro Em julho de 1967, nas águas de um prêmio literário para universitá­rios, vi-me no aeroporto de Orly, em Paris, com uma mala de couro na mão e os filmes da Nouvelle Vague na cabeça —que eu assistia no Paissandu e em outros cinemas do Rio. Um colega me instruíra a tomar um táxi, descer na Rue Saint-Jacques, perto da Sorbonne, e assuntar as janelas dos prédios de apartament­os. Numa delas eu leria um aviso de vaga para alugar. Fiz isso e deu certo. E assim, aos 19 anos e com uma hora de Paris, já me alojara a dois passos do Boulevard Saint-Germain, onde, para a minha turma, o mundo acontecia.

Um dos programas deste jovem cinéfilo, além de babar diante de tantos cinemas comerciais e de arte na cidade, era tentar identifica­r as ruas onde Jean-Luc Godard filmara tal ou qual sequência de “Acossado”, “Uma Mulher é uma Mulher” ou “Viver a Vida”. E, pensando tê-las localizado —errado, naturalmen­te—, refazer a pé os travelling­s da câmera de Raoul Coutard. A ideia de, de repente, ver Godard numa esquina, com seus óculos escuros, terninho da Ducal e barba por fazer, não era absurda — afinal, vivia-se tropeçando em Glauber Rocha no Rio.

É claro que, em um mês de andanças por Paris, não vi nem sombra de Godard. E só agora, 51 anos depois, descubro que isso teria sido facílimo. Bastaria me postar diante do número 17 da própria Rue Saint-Jacques, para onde ele acabara de se mudar com sua nova namorada, a atriz Anne Wiazemsky, com quem fizera o ainda inédito “A Chinesa” —a um quarteirão de onde eu estava morando. Eu era vizinho de Godard e não sabia!

O endereço está no livro de Anne, “Um Ano Depois”, lançado aqui pela editora Todavia. É uma deliciosa memória do que significav­a ser casada com o então cineasta mais famoso e revolucion­ário do mundo — e também o mais inseguro, maníaco e ciumento.

Hoje, eu preferiria ter conhecido Anne Wiazemsky.

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