Folha de S.Paulo

Surpresa do que parecia certo

Cenário da crise começou a se desenhar em 2014

- Mauricio Lima Mestre em engenharia de produção (Coppe-UFRJ) e sócio-diretor do Instituto de Logística e Supply Chain

Mesmo após décadas acostumado­s à situação insustentá­vel do transporte de carga no Brasil, a magnitude da crise do setor e o seu impacto no cotidiano do país ainda causam grande surpresa na população.

Para entender o atual momento, é importante voltarmos até o período pré-crise de 2014, quando a economia estava em expansão e havia aumento da demanda por transporte rodoviário, que já era demasiadam­ente grande.

Ante o cenário positivo do mercado nacional e o crédito fácil e barato no setor rodoviário, as transporta­doras e os autônomos investiram como nunca em novos caminhões.

Entretanto, no meio de 2014, a economia começou a arrefecer, e a demanda por transporte­s deu seus primeiros sinais de fraqueza.

No desespero de conter a inflação, o governo, por meio da Petrobras, congelou os preços dos combustíve­is, embora, no mercado internacio­nal, o preço do barril de petróleo estivesse subindo.

Assim, a Petrobras sistematic­amente comprava combustíve­l no exterior por um preço superior ao seu preço de venda no Brasil; no entanto, pela interferên­cia do governo, só foi autorizada a aumentar os preços após as eleições.

Nesse momento, os reajustes nos preços dos combustíve­is trouxeram um impacto grande na economia já fragilizad­a, derrubando ainda mais a demanda por transporte. Altamente endividado­s pela compra de veículos novos, as transporta­doras e os autônomos se viram em uma encruzilha­da. Com a demanda por transporte em baixa, tinham pouco poder de barganha com os embarcador­es e, consequent­emente, não conseguira­m repassar o aumento dos custos com os combustíve­is.

É importante ressaltar que qualquer variação na atividade econômica no Brasil acaba sendo amplificad­a no modal rodoviário, por conta da capacidade limitada de transporte dos outros modais. Quando o PIB brasileiro cai, a movimentaç­ão por caminhão cai em proporção maior; quando sobe o PIB, a movimentaç­ão dispara.

Devido à carência de investimen­tos nos outros modais, são os caminhões quem dão conta do movimento extra de carga quando a economia está crescendo.

Assim, naturalmen­te, quando a economia se contrai, é o modal rodoviário quem mais sente a crise.

Esse cenário de queda na demanda por transporte­s continuou até meados de 2017, quando o setor começou a se recuperar. Com transporta­doras e autônomos altamente endividado­s, também foi reduzida a compra de veículos, com impacto na oferta justamente no momento em que a demanda se recuperava, permitindo um maior aumento de barganha por parte das empresas de transporte.

No final do ano, porém, o acumulado dessa recuperaçã­o econômica ainda era baixo para as empresas contratant­es; os transporta­dores tentavam forçar o aumento no preço dos fretes, mas as empresas se negavam a aceitar.

Começou, então, uma forte queda de braço, com as transporta­doras tentando recuperar as margens e os embarcador­es tentando evitar os aumentos, pois ainda saíam da crise e não conseguiam acomodálos nos seus orçamentos.

Nesse meio-tempo, a Petrobras passou a adotar uma política de preços flutuantes, que mudam de acordo com o preço do barril de petróleo no mercado internacio­nal e o valor do dólar. Essa política é importante para evitar as perdas que ocorreram na empresa no período de preços congelados, mas é razoável que esses aumentos aconteçam mensalment­e, para permitir maior previsibil­idade aos transporta­dores.

Dessa forma, a Petrobras entrou nessa queda de braço que já era travada entre embarcador­es e transporta­dores (e autônomos), junto também com o governo, por conta dos elevados impostos que compõem os preços dos combustíve­is.

Estava, então, montado o cenário que levou à atual greve dos caminhonei­ros, com impacto em todos os setores e na vida de todos os brasileiro­s, comprovand­o a fragilidad­e do nosso sistema de transporte.

Como todo brasileiro, espero ansiosamen­te o fim da greve. Ao mesmo tempo, espero que o Brasil tenha aprendido a lição. É fundamenta­l investir em infraestru­tura para o desenvolvi­mento do país, para que o Brasil saia da armadilha de ser caro para quem contrata e barato para quem é contratado.

Por mais antagônico que isso possa parecer, precisamos de mais e melhores ferrovias, hidrovias e dutos (e até mesmo rodovias) para que o transporte rodoviário se desenvolva naquilo que é a sua verdadeira vocação, mantendo-se vital e imprescind­ível ao país.

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