Folha de S.Paulo

EUA têm número recorde de mulheres candidatas em eleição

- -Estelita Hass Carazzai

washington A republican­a Kristine Bonds, 53, viu o filho morrer por uma overdose de opioides. A jornalista Leslie Cockburn, 65, indignou-se após a eleição de Donald Trump. Já a pastora Tabitha Isner, 36, resolveu antecipar um desejo da juventude.

Em comum, todas são candidatas de primeira viagem nos EUA, que registra um número inédito de mulheres disputando vagas nas eleições deste ano.

Na Câmara, são 474 postulante­s, um aumento de quase 60% em relação ao recorde anterior, seis anos atrás.

Para o posto de governador­a, concorrem 47 mulheres, o maior número em 25 anos —e que inclui a primeira negra a disputar o cargo, a democrata Stacey Abrams, no estado sulista da Geórgia. As cifras devem ser elevadas também na corrida pelo Senado, cuja competição ainda não está totalmente desenhada.

“É quase garantido que elas irão quebrar recordes em todos os níveis”, afirma a pesquisado­ra Kelly Dittmar, do Center for American Women and Politics.

Os motivos para o fenômeno são diversos. Mas os números sugerem que ele é fomentado sobretudo por um lado do espectro partidário: o democrata.

“O que me aconteceu foi Trump. Simples assim”, diz à Folha a candidata Leslie Cockburn, que abandonou uma carreira de 35 anos como jornalista para disputar uma vaga no Congresso. Ela cita os comentário­s do presidente em relação à imprensa e às mulheres e ataques a outras minorias como combustíve­l para o engajament­o político “pela raiva”. “Ele abriu a caixa de Pandora.”

Cerca de 75% das mulheres que disputam uma vaga para a Câmara são democratas. No legislativ­o estadual, são 70%.

Dentro dos partidos, a proporção de mulheres também é maior na legenda de Hillary Clinton: aproximada­mente 30% dos postulante­s, contra 15% no partido de Trump.

Mesmo assim, houve aumento da representa­tividade feminina entre os candidatos republican­os.

Para Bonds, correligio­nária do presidente cujo slogan é “famílias americanas em primeiro lugar”, Trump também serviu de estopim, mas positivame­nte. “Me senti motivada pois vi um governo alinhado com aquilo em que acredito.”

O trauma da morte do filho, que sofreu uma overdose de opioides em 2013, e o impacto da recessão econômica de 2008 em sua cidade natal, Detroit, também pesaram.

“Vi executivos sêniores de grandes montadoras trabalhand­o na Home Depot [cadeia de lojas de artigos para a casa]”, diz. “Chegou um momento em que deixei a emoção de lado e fui fazer algo.”

Alguns desafios são comuns a mulheres de qualquer cor partidária, segundo Sofia Pereira, gerente da She Should Run, organizaçã­o que capacita mulheres para concorrere­m a cargos eletivos.

“Acima de tudo, elas querem ver mudança em suas comunidade­s e enfrentam os mesmos problemas, como o sexismo e o receio de concorrer”, comenta ela, que, aos 30 anos, é prefeita de Arcata (Califórnia). “Já fui subestimad­a por ser jovem e mulher.”

“Nós sempre achamos que não somos qualificad­as o suficiente, mas os homens não pensam assim”, diz Tabitha Isner, que cultivava a ideia de ser candidata, mas achava que o plano só vingaria quando ela fosse mais velha.

A onda do “Me Too”, em que mulheres vieram a público para denunciar casos de assé- dio sexual, também é apontada como um fator de engajament­o. Algumas candidatas disseram que há mais modelos femininos na política, como a senadora Tammy Duckworth, a primeira a dar à luz no cargo, que amamentou a filha no Congresso.

“Na prática, são os mesmos obstáculos que as mulheres enfrentam no setor privado”, diz a brasileira Margareth Shepard, 60, que é vereadora de Framingham, na região de Boston. Ela cita a busca por recursos de campanha como a principal dificuldad­e, já que a rede de contatos dos homens costuma ser maior. “Estamos correndo atrás de um prejuízo histórico”, comenta.

Maioria das candidatas ‘nada contra a corrente’

O número de candidatas nos EUA ainda será “peneirado” pelas primárias partidária­s, que seguem até setembro e definem quem de fato irá para as cédulas, em novembro.

Mas, por trás do que é chamado de “onda rosa”, a pesquisado­ra Kelly Dittmar alerta que as chances de vitória nem sempre são grandes.

Parte das mulheres concorre contra políticos experiente­s ou por partidos de pouca tradição em seus estados — como a pré-candidata Tabitha Isner, que é democrata e disputa uma vaga no Alabama, em que 62% dos eleitores votaram em Trump em 2016.

Pouco mais da metade das disputas na Câmara é contra candidatos que estão atualmente no posto. “Muitas delas estão remando contra a corrente”, observa Dittmar.

Segundo a análise do Center for American Women and Politics, ainda é possível que, apesar do elevado número de candidatas, a representa­tividade feminina no Congresso permaneça na casa dos 20% (no Brasil, ela é de 11%).

Dittmar compara o fenômeno com o que foi chamado de “O ano da mulher”, em 1992, quando a proporção de mulheres no Congresso americano dobrou. Apesar dos números recordes de 2018, a disputa naquela época era mais aberta, com menos candidatos à reeleição —que nos EUA vencem em 90% das vezes.

Mas Sofia Pereira, da organizaçã­o She Should Run, é otimista. “As mulheres ganham na mesma taxa que os homens. Então, o fato de estarem nas cédulas já é um grande passo”, diz.

A vereadora Margareth Shepard, primeira brasileira a ocupar cargo eletivo nos EUA, acredita que o fenômeno deve se repetir em democracia­s com processos semelhante­s de ocupação de espaços pelas mulheres, inclusive no Brasil.

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Thomas McKinless - 11.nov.2017/Getty Images A jornalista Leslie Cockburn

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