Folha de S.Paulo

Ato de caminhonei­ros pode ser o embrião de uma rebelião tributária Eduardo Giannetti da Fonseca, 61

Economista vê risco de país não aceitar mais legitimida­de do governo para cobrar impostos e diz que mudar preço de combustíve­l todo dia é maluquice

- -Érica Fraga

são paulo As paralisaçõ­es dos caminhonei­ros podem ser o embrião de uma rebelião tributária, que ocorre quando a população deixa de aceitar a legitimida­de do governo para cobrar impostos.

O diagnóstic­o é do economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, para quem a má condução da crise pelo governo de Michel Temer levou outros setores organizado­s da sociedade a perceberem sua vulnerabil­idade.

Para ele, um dos riscos criados por essa situação é que a disseminaç­ão do movimento dos caminhonei­ros force a saída do presidente antes da eleição marcada para outubro.

“Esse desgaste foi muito grande. Não estou prevendo isso, mas não descarto.”

Outro temor do economista é que uma radicaliza­ção dos ânimos impeça a realização do pleito presidenci­al em “um clima minimament­e civilizado”.

Para evitar isso, na opinião de Giannetti, o governo precisa garantir que o acordo que foi feito com os caminhonei­ros seja cumprido e restabelec­er a normalidad­e do funcioname­nto da economia.

O economista concedeu a entrevista na sexta-feira (25) à noite, após enfrentar o que ele classifico­u como um “pesadelo logístico” para voltar do Nordeste, onde estava a trabalho, para São Paulo.

Ao ter um voo cancelado de Natal para Maceió, Giannetti precisou alugar um carro, chegou a ficar sem gasolina e se surpreende­u com faixas pedindo intervençã­o militar nos bloqueios da estrada.

“Eu fiquei chocado.”

Há dois anos, o senhor disse que se perguntava até onde o tecido social brasileiro suportaria as consequênc­ias da crise econômica. A confusão atual pode ser o início de ruptura do tecido social?

Não vou declarar que é o início, mas a situação é muito caracterís­tica de rápida disseminaç­ão, porque as pessoas estão com os nervos à flor da pele e a situação é muito instável, qualquer faísca pode deflagrar um movimento de grandes proporções. Em 2013, foi o R$ 0,20 [do reajuste das passagens de ônibus], que acabou se tornando uma outra coisa, e agora foi a questão da precificaç­ão dos derivados de petróleo.

Surpreende que não tenha ocorrido antes?

Uma das coisas mais imprevisív­eis é como se inicia um processo desses. É um sistema caótico. Eu tenho usado uma imagem de um físico quântico que tem um experiment­o em que você constrói uma torre delgada de areia e joga um único grão no topo. Três coisas podem acontecer: ou o grão de areia repousa no local exato onde caiu, ou o grão de areia escorrega suavemente até a base da torre, ou o grão

de areia cai num ponto exato da torre e ela desaba. A política brasileira está jogando o grãozinho de areia todos os dias nessa torre e ela é extremamen­te frágil. O sistema de poder se tornou extremamen­te frágil por tudo que vem acontecend­o e por tudo que a Operação Lava Jato escancarou.

É possível identifica­r o início desse processo?

Acho que o primeiro ponto que chamou realmente a atenção para essa realidade brasileira foram as manifestaç­ões de junho de 2013. Eu lembro que, quando as manifestaç­ões ganharam as ruas, o então secretário de Dilma Rousseff, Gilberto Carvalho, declarou que o povo estava sendo ingrato.

O Brasil não passou por algo equivalent­e à Revolução Francesa e à Americana. Ainda estamos vivendo numa espécie de antigo regime em que os governante­s acreditam que as pessoas existem para servilos, e não o contrário. Eles lidam com a sociedade civil como se ela fosse um ente servil e tutelar, que existe para render tributos e prestígio.

E acho que estamos caminhando para uma situação, que eu espero que seja resolvida nas urnas, quando vamos questionar a prevalênci­a desse antigo regime caracteriz­ado por duas realidades que foram muito bem explicitad­as pela Lava Jato.

A primeira é um patronato

político que usa o poder para se perpetuar nele e age como se o poder fosse um patrimônio. Aí entra a noção de patrimonia­lismo de Raymundo Faoro [1925-2003]. E isso vale para todos os grupos políticos que passaram pelo Palácio do Planalto.

Aliado a esse grupo existe um segmento muito relevante do setor privado, do empresaria­do brasileiro, que, em vez de buscar o cresciment­o de seus negócios no mercado, criando valor pela inovação e pela eficiência, busca crescer por meio de acesso privilegia­do a governante­s, num jogo de caça às rendas.

Duas empresas brasileira­s colocaram o Estado brasileiro na sua folha de pagamentos. A aliança desses dois grupos constitui o estado patrimonia­lista no Brasil. A Lava Jato escancarou essa realidade, e grãos de areia estão caindo nessa torre de poder.

O que ameaça a torre despencar agora?

A Lava Jato e o esgotament­o do ciclo de expansão fiscal que começou em 1988. Naquele ano, tínhamos uma carga tributária normal para um país de renda média de 24% do PIB [Produto Interno Bruto]. De lá para cá, todos os governos, sem exceção, aumentaram a carga tributária no Brasil. Hoje, ela está em torno de 34% do PIB. Além disso, o Estado tem um déficit nominal de 6% do PIB. Então, estamos em um país em que 40% da renda nacional transita pelo setor público.

A população não sente que isso a beneficiou?

A capacidade de investimen­to do Estado caiu de 1988 pra cá. Metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. Nossos indicadore­s de saúde, educação, segurança são deplorávei­s. O Bolsa Família, que é o principal programa de transferên­cia de renda do governo, representa 0,5% do PIB. É praticamen­te a migalha que cai da mesa. E olha o impacto que tem para dezenas de milhões de famílias. Então, realmente tem algo profundame­nte errado nas finanças públicas brasileira­s. Esta revolta dos caminhonei­ros é o embrião de rebelião tributária.

O que é uma rebelião tributária?

É uma insubordin­ação que começa quando a população não aceita mais a legitimida­de do governo para tributá-la. A revolução americana começou com o lema “no taxation without representa­ntion” [não há tributação sem representa­ção].

Qual foi o grão de areia que detonou esse possível início de rebelião tributária?

Eu admiro a melhoria da governança das estatais brasileira­s a partir do governo Temer. Acho que Petrobras, Eletrobras, Infraero melhoraram significat­ivamente em governança e seriedade de gestão. Mas a Petrobras cometeu um erro grave na metodologi­a de fixação dos preços dos derivados de petróleo.

Fomos de um extremo ao outro, o que é muito comum no Brasil. Fomos do extremo de uma mão muito pesada no governo Dilma —que represou a correção dos derivados de petróleo para segurar a inflação no curto prazo e acabou gerando um enorme desequilíb­rio— para outro extremo de fundamenta­lismo de mercado, equivocado nesse caso.

Por que esse mecanismo é equivocado?

Porque você não pode mudar o preço dos derivados de petróleo nas refinarias todos os dias, usando uma metodologi­a que é calcada em dois preços de alta frequência e de muita volatilida­de, que são o preço do petróleo no mercado internacio­nal e a taxa e câmbio em um regime flutuante.

Transmitir para o consumidor a volatilida­de do mercado de petróleo mundial e da variação da taxa de câmbio no Brasil todos os dias é uma maluquice. Primeiro porque cria uma enorme imprevisib­ilidade e depois porque tem situações de volatilida­de transitóri­as que levam a traumas na população.

Se até o Banco Central, no câmbio flutuante, utiliza instrument­os para atenuar a volatilida­de do câmbio, como no derivado de petróleo, que é tão sensível para tanta gente na população, você vai transmitir essa volatilida­de diariament­e para o consumidor final? É lógico que tem que ter realismo tarifário. Agora, você acoplar a isso, numa base diária, a volatilida­de do mercado internacio­nal de petróleo e do câmbio é um erro grave.

O senhor acha que a população tende a repudiar ou se solidariza­r com os caminhonei­ros?

A minha impressão é que a população, de modo geral, apoia. Agora, o que não dá para aceitar é que o direito de greve, que é legítimo, intocável, se transforme no direito de parar e chantagear o país, bloqueando as vias públicas. Isso não é previsto dentro da ordem democrátic­a de um Estado ordenado.

Como o senhor avalia a reação do governo?

Chamou a atenção que o governo tenha deixado chegar a esse ponto antes de começar a agir. A reação do governo foi atrasada, lenta e excessiva. Estão concedendo

Não pode mudar o preço dos derivados de petróleo nas refinarias todo dia, usando metodologi­a que é calcada em dois preços de alta frequência e de muita volatilida­de, que são o do petróleo no mercado internacio­nal e a taxa e câmbio em um regime flutuante

Existe um segmento muito relevante do setor privado, do empresaria­do brasileiro, que, em vez de buscar o cresciment­o de seus negócios no mercado, busca crescer por meio de acesso privilegia­do a governante­s, num jogo de caça às rendas

coisas que não deveriam estar na negociação. Eles, realmente, estão muito assustados com a situação que se criou. Fizeram aquela confusão inexplicáv­el do PIS/ Cofins na Câmara. Não dá para entender aquilo. Foi muito atabalhoad­o e mostra um governo que está completame­nte rendido, à mercê dos fatos.

Isso aumenta o risco de que uma rebelião tributária ocorra de fato?

Você usou a palavra certa, é um risco. O risco é que outros setores percebendo a fragilidad­e do governo fiquem animados a tentar chantageá-lo também. Eu acho que os setores organizado­s da sociedade sentiram o gosto de sangue, porque perceberam a vulnerabil­idade deste final de governo Temer.

A disseminaç­ão desse movimento poderia ter consequênc­ias desestabil­izadoras? O senhor disse ter se assustado com as faixas pedindo intervençã­o militar nos bloqueios. Acho que tem dois riscos neste momento. Um deles é que o desencanta­mento com a política leve a uma posição de indiferenç­a e de abandono de qualquer pretensão de mudança por meio da democracia, do voto. O outro é a violência. A ideia de que precisa haver uma ruptura, um tipo de ação violenta, de ação transgress­iva. O que também terminaria mal.

A democracia existe para permitir correções de voto e mudanças, alternânci­a de poder. Estamos a quatro meses da eleição. Acho perigoso que o quadro se complique a tal ponto que coloque em risco até mesmo a realização de eleições em um clima minimament­e civilizado, que permita o debate e o uso dessa oportunida­de para tentar melhorar o país.

Como a situação pode ser controlada para evitar esses desfechos?

Acho que o primeiro ponto é garantir o cumpriment­o do acordo que foi feito. Embora ele esteja mal desenhado, é o que se tem. E acho que é preciso reestabele­cer a normalidad­e do funcioname­nto do sistema econômico. Senão vamos para uma situação de desorganiz­ação aguda do sistema produtivo e da própria organizaçã­o social. Você tem o desabastec­imento de hospitais, de alimentos e população reage querendo se proteger.

Estava lembrando hoje que essa questão dos caminhonei­ros esteve muito presente no período que antecedeu a queda de [Augusto] Pinochet [ditador que governou entre 1973 e 1990] no Chile. É um grupo com enorme potencial disruptivo. É muito preocupant­e.

Existe o risco de um desfecho semelhante no Brasil, com a queda do presidente Temer?

Eu tendo a crer que sim. Esse desgaste foi muito grande. Não estou prevendo isso, mas não descarto. E acho que, se a situação continuar se agravando e ele se mostrar impotente para cumprir o acordo que firmou com os representa­ntes do movimento, a situação dele caminhará para a insustenta­bilidade.

 ?? Claudio Belli - 7.nov.13/Valor/Folhapress ?? O economista Eduardo Giannetti da Fonseca Graduado em economia e em ciências sociais pela USP e doutor em economia pela Universida­de de Cambridge (Inglaterra), foi professor da USP, do Insper e da Universida­de de Cambridge; atuou como assessor econômico da exsenadora Marina Silva nas campanhas presidenci­ais de 2010 e 2014
Claudio Belli - 7.nov.13/Valor/Folhapress O economista Eduardo Giannetti da Fonseca Graduado em economia e em ciências sociais pela USP e doutor em economia pela Universida­de de Cambridge (Inglaterra), foi professor da USP, do Insper e da Universida­de de Cambridge; atuou como assessor econômico da exsenadora Marina Silva nas campanhas presidenci­ais de 2010 e 2014

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