Folha de S.Paulo

WhatsApp organiza e (des)informa manifestan­tes pelas rodovias do país

Mensagens com ou sem autoria definida são compartilh­adas por grupos com centenas de integrante­s

- Carolina Linhares, Gustavo Fioratti, Isabel Fleck, Marcelo Toledo e Thaiza Pauluze

são paulo, embu das artes (sp), ribeirão preto (sp) e são gonçalo do sapucaí (mg) Há uma semana, uma mensagem que dizia que o Brasil ia parar a partir da última segunda-feira (21) em protesto contra a alta do combustíve­l chegou a um grupo do aplicativo de mensagens WhatsApp de 60 caminhonei­ros da região de Embu das Artes, em São Paulo.

Parte deles se sensibiliz­ou com o chamado, cuja origem não era clara, e criou um outro grupo com o mesmo fim.

Na sexta-feira (25), ele já reunia mais de 290 pessoas, se tornando a principal forma de comunicaçã­o dos caminhonei­ros que protestava­m na rodovia Régis Bittencour­t.

O formato de mobilizaçã­o se repetiu em outros estados, permitindo que a paralisaçã­o prosseguis­se mesmo após o acordo anunciado pelo governo federal com parte das representa­ções da classe na noite de quinta (24).

“Se não fosse essa ferramenta e a internet, teríamos dispersado depois que o governo anunciou o fim da greve na televisão”, disse uma das lideranças de caminhonei­ros em Goiás, Wallace Ladim, conhecido como Chorão, que utiliza essa forma de comunicaçã­o.

Segundo ele, o grupo que

entrou em acordo com o governo era formado por sindicatos e patronais. “Os caminhonei­ros ainda querem desconto na gasolina e no gás de cozinha”, diz. E o recado passa pelo WhatsApp.

Assim tem sido feita a mobilizaçã­o dos caminhonei­ros nas estradas brasileira­s. Fotos, vídeos, comunicado­s se espalham pelo aplicativo.

Após a reunião de quinta, a CNTA (Confederaç­ão Nacional dos Transporta­dores Autônomos), por exemplo, publicou comunicado reportando à classe a proposta do governo —que se espalhou por mensagens de celular.

O texto apontava que ainda estavam pendentes antigas queixas da categoria, como a “a suspensão imediata da cobrança de pedágio sobre eixo suspenso de caminhões vazios”.

Os manifestan­tes que ocuparam as rodovias não sabem muito bem que são seus representa­ntes, mas as mensagens dão a entender que há alguém para defendê-los.

O caminhonei­ro autônomo William Batista, 32, disse que as instituiçõ­es que conversara­m com o presidente Michel Temer não representa­vam quem estava estrada. “Mas sei que tem seis pessoas

lá [em Brasília] negociando para a gente. Os nomes certinhos eu não sei. Tem um vídeo no WhatsApp, eles estão lá.”

Também pela rede social circulam informaçõe­s de conteúdo duvidoso, como sobre a sempre iminente chegada do Exército para retirá-los da rodovia, e até que militares teriam orientado os caminhonei­ros a colocar faixas em apoio a uma intervençã­o das Forças Armadas para evitar a retirada. Há dezenas delas em diferentes rodovias.

Apontado como liderança dos caminhonei­ros parados em São Gonçalo do Sapucaí (MG), Paulo Roberto, 41, atribui o sucesso da greve à mobilizaçã­o pelo aplicativo. “O que fortaleceu foram os grupos que a gente já tinha”, completa.

Ele conta que grupos de caminhonei­ros desconheci­dos entre si, usados anteriorme­nte para discutir preços de fretes e condições de estrada, são hoje a rede de comunicaçã­o da paralisaçã­o.

“A gente foi montando, adicionand­o, e ficou do tamanho que está.”

Acampados há quatro dias no entorno do terminal de petróleo de Ribeirão Preto (a 313 km de São Paulo), caminhonei­ros têm usado a rede social

e também o radioamado­r para serem supridos de alimentos por familiares e não deixarem o local da manifestaç­ão “descoberto”.

“Alguns são associados a entidades e sindicatos, mas outros não são. A causa é a mesma, independen­temente disso”, disse o caminhonei­ro João Cardoso dos Santos.

Ele foi um dos que refutaram a negociação entre sindicatos e o governo federal. “Não estava lá, não estou em nenhum sindicato. Sou autônomo, como o próprio nome diz, e não tive representa­ção [no encontro na capital federal]”, afirmou.

Caminhonei­ra Selma já criou três grupos no aplicativo

Caminhonei­ra há 25 anos numa profissão dominada por homens, Selma Regina Santos, 48, convoca online apoiadores ao protesto contra o custo do diesel.

Ela é uma ativista atuante com um celular na mão. Criou três grupos no aplicativo de mensagens WhatsApp: Para Frente Brasil, Siga Bem Caminhonei­ro e Rainha dos Caminhonei­ros

—este último em sua homenagem.

Após o anúncio de um acordo entre o governo e alguns representa­ntes da categoria, Selma passou a articular a continuaçã­o da greve.

Casada com o também caminhonei­ro Ivo Evangelist­a, 69, eles contam gastar, numa viagem entre Curitiba, onde vivem, e o Rio Grande do Sul, cerca de R$ 1.100 em diesel. Sem contar outros custos do transporte —em geral de mudanças, peças de carro e tecidos.

“De Foz do Iguaçu a Curitiba são dez pedágios e a pista ainda é malfeita. Os valores também mudam. Você passa lá e 15 dias depois, quando volta, está outro preço”, diz Selma.

E a rotina nas estradas tem outras agruras, como dormir no chão do baú e na boleia do caminhão. “A gente lava a roupa no banheiro do posto [de gasolina], estende dentro do baú, faz comida no chão. E, quando fica doente, muitas vezes não tem hospital ou farmácia por perto. Isso quando não dá defeito no caminhão...”

Se o motor quebrar, por exemplo, ela diz gastar em torno de R$ 5.000 pelo conserto. “As pessoas acham que caminhonei­ro ganha dinheiro igual água, mas a realidade é outra. Eu nunca tive Natal, meu Natal é em posto.”

Por causa da profissão, Selma também não participou da criação dos três filhos. “Hoje recebo a cobrança por não ter visto eles crescerem. Eu pagava uma pensão para a avó, que cuidava. Precisava trabalhar”, conta.

Não foram os filhos que a afastaram das longas viagens pelas rodovias —do Nordeste ao Sul do país. Selma descobriu há quatro anos uma trombose na perna e que tinha arritmia cardíaca.

Brigando contra as doenças, a caminhonei­ra seguiu na estrada, agora em itinerário­s mais curtos.

“Sigo lutando, guerreando, mas não consigo sair da estrada”, diz Selma. “Eu entrei em depressão, tive síndrome do pânico quando parei de ouvir o barulho do motor, de conhecer pessoas diferentes”, conta a caminhonei­ra. “Não consigo me ver com uma vassoura dentro de casa.”

A fragilidad­e da saúde foi também o motivo pelo qual decidiu não comprar a briga nas ruas. “Recebi um vídeo mostrando que tacaram uma pedra e mataram um motorista. Assim eu não quero. Sou caminhonei­ra, mas não podemos misturar greve com violência.”

Com o serviço parado durante os quatro dias em que rodovias federais de 25 estados e no Distrito Federal estão bloqueadas, Selma e Ivo calculam o prejuízo. “Para nós, que somos autônomos, o prejuízo é total. Mesmo assim apoio e incentivo a greve.”

 ?? Alexandre Rezende/Folhapress ?? Grupo registra manifestaç­ões na Fernão Dias; fotos, textos e vídeos dos próprios manifestan­tes alimentam a mobilizaçã­o
Alexandre Rezende/Folhapress Grupo registra manifestaç­ões na Fernão Dias; fotos, textos e vídeos dos próprios manifestan­tes alimentam a mobilizaçã­o
 ?? Arquivo pessoal ?? Caminhonei­ra Selma Regina Santos, 48, e o amigo caminhonei­ro Diego; Selma criou três grupos no aplicativo de mensagens WhatsApp para manter a mobilizaçã­o da categoria
Arquivo pessoal Caminhonei­ra Selma Regina Santos, 48, e o amigo caminhonei­ro Diego; Selma criou três grupos no aplicativo de mensagens WhatsApp para manter a mobilizaçã­o da categoria

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