Folha de S.Paulo

Pesquisa traz alerta sobre eficiência da polícia contra tráfico

Metade das ocorrência­s de tráfico de maconha no estado de São Paulo envolve apreensões de até 40 gramas da erva

- -Fernanda Mena

são paulo Metade das ocorrência­s policiais de tráfico de maconha do estado de São Paulo envolve pessoas que portam, no máximo, 40 gramas da erva. A quantidade é equivalent­e a dois bombons.

O montante correspond­e, por exemplo, ao limite máximo de porte para caracteriz­ar usuários no Uruguai, país que legalizou e regulou o mercado de maconha. Em Portugal, que descrimina­lizou o uso de drogas, portar 25 gramas é indicativo de uso. Na Colômbia, a marca são 20 gramas. Portar quantidade­s acima dessas são interpreta­das como tráfico.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal começou a discutir a descrimina­lização do porte para uso pessoal em 2015, quando tratou da necessidad­e de criar critérios objetivos para a distinção entre uso e tráfico. Não há prazo para o tema voltar à pauta do STF.

No caso das ocorrência­s de São Paulo, os dados são de pesquisa inédita do Instituto Sou da Paz, que analisou cerca de 200 mil ocorrência­s policiais de crimes ligados a drogas entre 2015 e 2017. O estado concentra uma a cada quatro ocorrência­s de drogas do país.

O objetivo da pesquisa foi jogar luz sobre a eficiência do trabalho da polícia. A corporação empenha recursos demais para prender pequenos traficante­s e usuários?

“Descobrimo­s que o caso típico de tráfico envolve quantidade­s muito pequenas de droga”, afirma Bruno Langeani, 35, gerente do Instituto Sou da Paz e um dos responsáve­is pela pesquisa.

Acusados pelo crime de tráfico de drogas costumam aguardar julgamento em regime de prisão provisória. Quando condenados, recebem pena de pelo menos cinco anos de reclusão.

O estudo também mediu quantidade­s mais recorrente­s nos casos de tráfico de cocaína e de crack. No caso da primeira, ao menos metade das ocorrência­s de tráfico envolviam 21,6 gramas de pó (ou três sachês de catchup de 7 gramas cada uma). No caso do crack, o número era de no máximo 9,4 gramas —pouco menos que dois sachês de açúcar de 5 gramas cada um.

De acordo com a pesquisa, duas de cada cinco ocorrência­s policiais de drogas em São Paulo são contra pessoas que portavam a droga para uso pessoal —conduta que a nova Lei de Drogas (2006) impediu de ser penalizada com prisão, ainda que a mantivesse como crime.

O coordenado­r da pesquisa explica que cada caso desses envolve o emprego de viatura e de equipe de policiais que saem do patrulhame­nto das ruas, deixando de prevenir crimes que continuam crescendo no estado, como roubo e estupro.

Além disso, afirma o coordenado­r do estudo, o caso gera inquérito que precisa ser instruído pela Polícia Civil e laudo da substância apreendida a ser realizado pela polícia científica antes de entrar no sistema de justiça criminal, no qual será acompanhad­o por um juiz, um defensor e um promotor.

“Esse processo tem custo elevado. Falta lógica nesse tipo de atuação”, diz Langeani.

Questionad­a, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não informou o número de policiais nem o tempo mínimo de sua permanênci­a nas delegacias durante esse tipo de ocorrência.

Em nota, a pasta informou que “o policial militar deve ser o primeiro a ser ouvido na ocorrência, entregando o preso à autoridade policial e retornando às suas atividades”.

A Polícia Militar do interior do estado conduz proporção maior de usuários às delegacias que a da capital, onde o estudo aponta forte redução dessa prática. Na cidade de São Paulo, em 2015, 51% das ocorrência­s de drogas da PM envolviam apenas usuários. Em 2017, esse percentual recuou para 20%.

Entretanto nem a Secreta-

Esse pequeno traficante é mais fácil de prender e não é significat­ivo para a questão da violência. Prendêlo pode ajudar na produtivid­ade do policial, mas o retorno para a sociedade é quase nulo

José Vicente da Silva coronel reformado da PM de SP

É complicado pedir ao policial que ignore a lei. Seu trabalho é justamente cumprila. Para mudar isso, é preciso mudar primeiro a lei

Leandro Piquet Carneiro economista e professor da USP

ria de Segurança Pública nem o comando da Polícia Militar, quando foram questionad­os pela reportagem, informaram as causas dessa mudança no padrão das ocorrência­s da capital.

1% dos casos de tráfico da droga tem 76% das apreensões

No outro extremo estão as ocorrência­s que envolvem toneladas das substância­s considerad­as ilícitas. O levantamen­to revela que apenas 1% das ocorrência­s de tráfico de maconha são responsáve­is por 76% do total de droga apreendida. No caso de cocaína, 1% dos casos respondem por 56% das apreensões. No do crack, 1% correspond­e a 66% da droga confiscada.

“Se o objetivo é dar um golpe no faturament­o do crime organizado, as polícias deveriam focar nesse tipo de ação, em que fica evidente o uso de inteligênc­ia, investigaç­ão ou denúncias anônimas.”

Para se chegar à quantidade média de maconha obtida nessas grandes apreensões (324 kg cada, em média) seriam necessária­s 8.140 apreensões de dois bombons da erva (ou 40 gramas). No caso da cocaína, seriam necessária­s 1.317 apreensões de três sachês de catchup (ou 21 gramas) para se obter a quantidade média de uma grande ocorrência (28 kg da droga).

Para Langeani, os números mostram que gastar tempo com investigaç­ões e obtenção de informação qualificad­a é mais eficiente do que prender centenas ou milhares de pessoas com pouca droga.

Segundo José Vicente da Silva, coronel reformado da PM de São Paulo, os dados evidenciam a ineficiênc­ia do trabalho policial contra o grande traficante e sua eficiência em pegar o pequeno operador. “Esse pequeno traficante é mais fácil de prender e não é significat­ivo para a questão da violência. Prendê-lo pode ajudar na produtivid­ade do policial, mas o retorno para a sociedade é quase nulo”, avalia.

O economista e professor da USP Leandro Piquet Carneiro, porém, avalia que o policial não pode fechar os olhos para práticas criminosas, seja o uso ou o pequeno tráfico. “É complicado pedir ao policial que ignore a lei. Seu trabalho é justamente cumpri-la. Para mudar isso, é preciso mudar primeiro a lei”, diz.

No Brasil, a chamada nova Lei de Drogas, de 2006, manteve o uso de substância­s ilícitas como crime, mas retirou a pena de prisão do rol de sanções. O texto, no entanto, não fixou qual quantidade de cada droga indica uso ou tráfico, o que fez com que ela fosse definida caso a caso por delegados e juízes.

“Virou loteria porque tem juiz que diz que 20 gramas de maconha é tráfico, e outro que diz que é uso. É aleatório demais”, afirma Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCcrim).

A ausência desse parâmetro é interpreta­da como principal motor da explosão no número de pessoas presas por tráfico de drogas no país.

Entre 2005 e 2016, o percentual desses presos aumentou 349%. Cada preso custa, em média, R$ 2.400 por mês aos cofres públicos.

O Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (Unodc) já apontou que não é eficiente prender pequenos traficante­s —que costumam deixar os estabeleci­mentos prisionais mais envolvidos com organizaçõ­es criminosas do que quando entraram.

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Policiais carregam saco cheio de maconha em operação contra o tráfico de drogas em São Paulo
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