Folha de S.Paulo

Crime no Matopiba

Desmata-se para produzir de forma insustentá­vel e ainda perturbar o clima

- Marcelo Leite Jornalista especializ­ado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”

É imprudente animar-se demais com a Operação Shoyo Matopiba do Ibama, que aplicou multas de R$ 105,7 milhões a astros do agronegóci­o no cerrado ( folha.com/l1gq9aim). Uma parcela diminuta das autuações lavradas pela agência ambiental acaba de fato recolhida aos cofres da União.

Não faltam recursos administra­tivos para os infratores enrolarem no pagamento. Depois, há a possibilid­ade de recorrer à Justiça, que sempre tarda e quase sempre falha.

De todo modo, anima um pouco ver o Estado nacional se mexer para fazer cumprir a lei (nada a ver com a greve-locaute dos caminhonei­ros). Quem planta, vende ou compra soja cultivada em áreas embargadas pelo Ibama por desmatamen­to ilegal comete uma infração e tem de pagar por isso.

Foram apreendida­s mais de 5 toneladas de soja (84 mil sacas). Em meio às 78 pessoas físicas e jurídicas flagradas no Maranhão, em Tocantins, no Piauí e na Bahia (MA-TO-PIBA) estão gigantes da estatura de uma Bunge e uma Cargill, que no entanto alegam consultar bancos de dados oficiais sobre áreas embargadas antes de comprar os grãos.

Pode ser que estejam caindo, de boa fé, no engodo de alguns produtores. Pode ser.

Mas também pode ser que só estejam seguindo o exemplo de multinacio­nais como a John Deere, fabricante de máquinas agrícolas que no cenário internacio­nal assume compromiss­os para reduzir emissões de carbono enquanto seus representa­ntes locais pintam e bordam para agravar o aqueciment­o global.

O jogo duplo foi revelado nesta Folha por Patrícia Campos Mello e Avener Prado. Em reportagem sobre o cerrado para a série Crise do Clima ( folha.com/crisedocli­ma), uma concession­ária de tratores Deere, a Agrosul, patrocina palestras em que o meteorolog­ista Luiz Carlos Molion diz que não existe aqueciment­o global.

Não é a única empresa que fatura com o agronegaci­onismo de resultados do palestrant­e. Contra tudo que a pesquisa científica vem mostrando com dados empíricos, Molion afirma que o CO2 não causa efeito estufa, que desmatamen­to não diminui chuvas e que o mundo vai na realidade se resfriar.

Além de grana, Molion recebe aplausos dos ruralistas, assim como Jair Bolsonaro. Não há fórmula mais fácil de agradar do que falar o que as pessoas querem ouvir.

E esse povo não quer outra coisa a não ser carta branca para seguir desmatando. Mais da metade do cerrado já virou cinzas, e o Matopiba é a mais recente fronteira de devastação dessa savana rica em biodiversi­dade.

Estudo do pesquisado­r Tiago Reis já indicou que 5,6 milhões de hectares da soja plantada no cerrado estão em áreas de risco produtivo alto ou médio, por causa do clima e do solo desfavoráv­eis. O levantamen­to foi noticiado em dezembro noutra reportagem de Patrícia Campos Mello(folha.com/no1940904).

Só se ouve falar na derrubada da floresta amazônica (80% de pé ainda). Mas a destruição do cerrado acontece aqui e agora.

Pior, ela contribui com 11% de todo o carbono emitido pelo Brasil em 2016, último dado disponível. Ou o dobro da poluição climática lançada na atmosfera pela atividade industrial, calcula levantamen­to do Sistema de Estimativa­s de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg), um consórcio de ONGs.

Em resumo: desmata-se demais para produzir de forma insustentá­vel e perturbar o clima do planeta. E ainda tem gente que acha que agro é pop, quando no Matopiba muito do que os ruralistas fazem é um crime.

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