Folha de S.Paulo

Mateus Solano A Globo, no entretenim­ento, é a coisa mais progressis­ta do país

Prestes a estrear longa, Mateus Solano fala sobre ‘a outra’ emissora que existia quando ele protagoniz­ou o primeiro beijo gay no horário nobre do canal: ‘Ainda muito medrosa’

- João Carneiro

Enquanto explica as diferenças entre os veículos em que trabalha, Mateus Solano começa a recitar uma conhecida fórmula: “O teatro seria a arte do ator. O cinema, a do diretor. E a TV...”

“...do patrocinad­or?”, pergunta o repórter. “Bom, do patrocinad­or, certamente. Mas, no caso de uma obra aberta [como uma novela], também é do público. O [Antonio] Fagundes fala uma frase que eu acho muito boa: ‘É ilusão a gente achar que a televisão é um monte de novelas interrompi­das pelos comerciais. Na verdade, são vários comerciais interrompi­dos pela programaçã­o’. E é isso mesmo”, diz Mateus.

Em 2014, ele entendeu na prática as engrenagen­s da teledramat­urgia quando seu personagem na novela “Amor à Vida”, o afetado vilão homossexua­l Félix, se tornou querido do público, gerando uma pressão “de fora para dentro” para que ele se redimisse e encontrass­e um amor. E os telespecta­dores pediam um beijo, que seria o primeiro entre dois homens no horário nobre da Globo, há pouco mais de quatro anos.

Houve “muita relutância e negociação” antes que a cena fosse ao ar. Mateus conta que mandava e-mails de madrugada para Thiago Fragoso, que interpreta­va seu par romântico, perguntand­o: “Será que a gente não faz uma carta para o Manoel Martins [diretor de entretenim­ento da Globo à época] para pedir [o beijo] com delicadeza?”.

“Era uma outra Globo, anterior a essa administra­ção do [Carlos Henrique] Schroder [atual diretor-geral da emissora], ainda muito medrosa nesse aspecto mais progressis­ta. Quem diria que o entretenim­ento da Globo seria a coisa mais progressis­ta do país. Quem diria!”

Ele mesmo já havia gravado um beijo com outro homem, que nunca foi ao ar, na minissérie “Um Só Coração”, de 2004. “O padrão Globo de qualidade é o padrão Brasil de qualidade. A Rede Globo não coloca primeiro, ela espelha o que já está [posto na sociedade]”, comenta.

“TV são anunciante­s. E anunciante­s são quanto público o programa tem. A partir do momento em que mais gente vai deixar a televisão ligada que mudar de canal, o beijo gay começa a ser interessan­te para uma empresa que quer lucrar. Ponto.”

Além da TV, Mateus também é ativo no teatro –está em turnê pelo Brasil com a peça “Selfie”– e no cinema –ele protagoniz­a o longa “Talvez uma História de Amor”, de Rodrigo Bernardo, que estreia em 14 de junho.

Filmada em São Paulo e Nova York, a obra é uma comédia romântica sobre Virgílio, um homem metódico e contro- lado que é surpreendi­do por uma mensagem de voz deixada por Clara, que está terminando um relacionam­ento com ele. Virgílio, porém, não tem nenhuma lembrança da mulher. Ao longo da trama, o espectador acompanha a saga do protagonis­ta para entender a razão de sua amnésia.

Mateus começou a carreira no teatro. “Sempre gostei muito de agradar”, diz ele, explicando por que decidiu seguir a profissão. “Fui entendendo as ações e as reações das pessoas, [pensando]: ‘Olha, se eu peço a coisa com mais gentileza, consigo uma reação um pouquinho mais gentil. Se eu for um pouco mais grave, o que acontece?’. Sempre pesquisei muito isso.”

“Quando fiz o meu mapa astral, me disseram que eu seria um excelente diplomata [profissão do pai de Mateus]. Eu falei: ‘Não tem um negócio de ator aí, não’? De alguma forma, como ator, eu também sou diplomata. Você vê isso nos trabalhos em que estou.” Ele diz que busca agora um trabalho “contundent­e” para levar aos palcos, algo que justifique “sair de casa, pagar um ingresso, entrar no teatro e sair modificado. Eu não vejo outro sentido para o teatro se não for isso, hoje.”

“Acho que o teatro tem que retomar essa função primordial. Num mundo onde o entretenim­ento é divertidís­simo na palma da sua mão, o teatro não pode ser nada parecido com isso. Tem que ser algo de outra ordem”. O ofício, diz ele, não vive um bom momento, com “dezenas” de salas de espetáculo­s fechando.

Mateus foi um dos primeiros a enviarem uma mensagem de solidaried­ade no ano passado a Zé Celso, diretor do Teatro Oficina, quando um órgão de patrimônio liberou a construção de torres por Silvio Santos em seu terreno ao lado da sede do grupo, em São Paulo. A companhia se opõe há décadas a essa possibilid­ade, defendendo que um parque seja criado no local.

Ele conta que se sentiu “muito acuado como artista” quando viu o vídeo, divulgado pela coluna, em que, ao ouvir de Zé Celso que é preciso “pensar na cidade” porque a morte chegaria um dia, Silvio Santos responde: “Não vou morrer!”.

“Isso é um retrato do que o capitalist­a acha: que vai acumular, acumular e não vai morrer”, diz Mateus. “O encontro que o teatro propõe, e que o próprio Oficina estava pro- pondo ali no terreno, [um lugar para] discutir a urbe, a sociedade...O capitalist­a não quer saber disso. Quer saber de prédio e carro.”

O ator, que já estrelou grandes campanhas publicitár­ias, afirma que hoje não emprestari­a seu rosto para propagande­ar um automóvel. Envolvido com a causa ambiental, ele dirige um carro híbrido, menos poluente, e diz que se ofereceu para atuar de graça em uma campanha do veículo. O fabricante não comprou a sugestão.

“Desde criança, minha mãe sempre mostrou, com a própria personalid­ade dela, como nós somos filhos da Terra e não donos dela. Essa é uma visão que me acompanha desde a infância”. Ele diz que tenta criar os próprios filhos, Flora, 7, e Benjamin, 3, com exemplos em vez de palavras. O ator de 37 anos é casado com a atriz Paula Braun, 39.

A partir do momento em que mais gente vai deixar a televisão ligada que mudar de canal, o beijo gay começa a ser interessan­te para uma empresa que quer lucrar. Ponto

“[A questão ambiental] independe de direita, de esquerda”, continua. “A natureza, o meio-ambiente, juntam a todos nós”, conclui.

“Acho que a esquerda, a direita, o centro, o cima, o baixo, o dentro, o fora, tinham que dar as mãos e ir em frente. Se você faz uma manifestaç­ão em prol do Brasil, mas bota que tem que prender esse ou aquele [político], você já está puxando para um lado. Esquece esse povo! É um Brasil novo que a gente quer.”

De alguma forma, como ator, eu também sou diplomata. Você vê isso nos trabalhos em que estou

Na política, Mateus diz que é “um cara de centro”. “Eu sou uma das poucas pessoas que conheço que estão no WhatsApp em grupos de extremadir­eita e de extrema-esquerda”, afirma. “Pode parecer um lugar confortáve­l, [podem dizer] ‘Ah, esse é vaselina, tá em cima do muro!’. Não! Vocês tão puxando daqui, dali, e eu tô falando: ‘Não, gente, é pra frente, não é pro lado!’”, completa.

Ele diz que não sabe ainda em quem votar nas eleições em outubro deste ano, mas sabe “em quem não votar: todo mundo que aí está, todo mundo que aí esteve. Eu acredito no novo. Se tem uma coisa que não vou fazer, é reeleger.”

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Karime Xavier/Folhapress O ator durante entrevista em um hotel de São Paulo
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Reprodução O beijo protagoniz­ado por Mateus e Thiago Fragoso

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