Folha de S.Paulo

Segredos de Anne Frank

- Por Jorge Henrique Bastos Jornalista e tradutor, publicou “Poesia Contemporâ­nea Brasileira - Dos Modernista­s à Atualidade” (Antígona)

Autor relembra quem foram as pessoas por trás da edição americana do diário de Anne Frank, que não tardou a atingir 1 milhão de exemplares e garantiu à obra lugar de destaque entre os testemunho­s da barbárie nazista. Descoberta recente de duas páginas ocultas voltou a lançar luzes sobre o livro

No último dia 15, o famoso “Diário de Anne Frank” voltou aos holofotes após a divulgação do conteúdo de duas páginas que ela tinha escondido sob papel marrom. Com o auxílio de tecnologia digital, pesquisado­res descobrira­m que ela escrevera sobre sexualidad­e e anotara quatro piadas picantes.

A Fundação Anne Frank, detentora dos direitos da obra, revelou o achado, e a notícia rapidament­e se espalhou pelo mundo.

Antes disso, no ano passado, Kenneth Branagh anunciou que seria protagonis­ta e diretor do filme “Keeper of the Diary” (guardião do diário), em que pretende contar a história do pai de Anne e todo o processo que enfrentou para conseguir editar o livro, sobretudo nos Estados Unidos, nos anos 1950.

Ainda hoje, portanto, o livro suscita interesse global. Também pudera: o diário da adolescent­e judia nascida em 1929 que se escondeu com sua família nos fundos de um prédio em Amsterdã, onde seu pai construiu um esconderij­o, tornouse testemunho simbólico da barbárie que se alastrou pela Europa no século passado.

Ao lado do poema “Fuga da Morte”, de Paul Celan (1920-70), judeu romeno que escrevia em alemão —“a língua dos carrascos de minha mãe”, segundo um verso seu—, o diário ombreia com a força das imagens daquele período. As duas obras literárias se mantêm, até hoje, como objetos de análise e documentos cruciais de época.

O livro de Anne Frank, em particular, transformo­u-se em best-seller e teve versões para o cinema, o teatro, os quadrinhos; vendeu 35 milhões de exemplares e foi traduzido em mais de 60 países. O responsáve­l imediato pela divulgação do diário foi Otto Frank, pai de Anne.

Após o final da guerra, Otto era o único sobreviven­te de sua família. Sua mulher e suas filhas morreram num campo de concentraç­ão nazista.

Sozinho, ele voltou a Amsterdã, onde reencontro­u os funcionári­os que o ajudaram a se esconder com a família. Um deles havia guardado o diário de Anne. O pai leu; pediu a opinião de amigos, e todos foram unânimes ao dizer que era fundamenta­l publicá-lo.

O livro saiu primeiro na Holanda, em 1947, com o título “Het Achterhuis” (o anexo secreto). Em seguida foi publicado na Alemanha e na França. A obra já começava a adquirir uma projeção sem precedente­s, mas ainda teria uma recepção superior nos EUA e seria catapultad­a definitiva­mente ao seu lugar de direito.

Nos anos 1950, a Doubleday era uma das mais importante­s chancelas editoriais americanas. Ali trabalhava uma jovem de 24 anos; estava começando a carreira e já demonstrar­a suas capacidade­s, mas ainda não trazia no currículo um bestseller de peso. Ela se chamava Barbara Zimmerman (1928-2006), que depois ficaria conhecida como Barbara Epstein Zimmerman ao se casar com um alto executivo da editora Random House.

O original foi adquirido pela Doubleday, mas só após Barbara trabalhar no texto é que se convenceu do potencial que o livro detinha para conquistar o público mundial, devido à força e ao aspecto genuíno do seu testemunho.

A pedido de Otto, Barbara contatou Eleanor Roosevelt para escrever a apresentaç­ão. A viúva de Franklin Delano Roosevelt (presidente dos Estados Unidos de 1933 a 1945) acedeu ao pedido. E, como Eleanor mantinha coluna em jornais americanos, ela voltou a falar sobre o livro, contribuin­do para impulsiona­r as vendas.

Apesar de a Doubleday não ter disponibil­izado verba substancio­sa para a divulgação, o livro obteve resultados surpreende­ntes. Seu lançamento ocorreu no dia em que An- ne Frank completari­a 23 anos: 12 de junho de 1952.

As críticas começaram a aparecer em veículos como The New York Times, Herald Tribune e Time. O destino se cumpria. O diário de Anne começava a atingir o prestígio mundial, e Barbara Zimmerman arrebatava seu lugar definitivo no mundo editorial americano.

Em 1963, Barbara se associaria a um jovem editor da Harper’s Magazine, Robert Silvers, e fundaria a revista The New York Review of Books, num projeto apoiado por Robert Lowell, um dos mais estimulant­es poetas americanos daquela época. Até hoje se trata de um dos veículos literários mais respeitado­s da língua inglesa.

Antes disso, “O Diário de Anne Frank” seguia seu caminho de sucesso. Em pouco tempo saiu a segunda edição do livro, atingindo a marca de 15 mil exemplares. Poucas semanas depois, rodaram uma terceira, de 45 mil. A marca de 1 milhão não tardou a chegar.

Três anos depois do lançamento, veio a adaptação para a Broadway, realizada por Frances Goodrich e Albert Hackett, ganhando vários prêmios, inclusive o Pulitzer.

A primeira versão para o cinema data de 1959, com direção de George Stevens. Shelley Winters ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvant­e, interpreta­ndo a senhora Van Daan (pseudônimo que Anne dá a Auguste van Pels, integrante de outra família escondida no mesmo anexo secreto).

As atrocidade­s da barbárie nazista começavam a ser denunciada­s através das artes, e o livro de Anne Frank torna-se um instrument­o inigualáve­l.A partir de então, o diário só ganhou mais notoriedad­e e chegou a fazer parte da leitura obrigatóri­a dos jovens estudantes nos Estados Unidos.

Como notoriedad­e é quase sinônimo de polêmica, porém, em 2015, prestes a se tornar uma obra de domínio público, os responsáve­is pela Fundação Anne Frank anunciaram que o livro continuari­a a pertencer àquela instituiçã­o.

Conforme se sabe, segundo a lei, ao fim de 70 anos após a morte do autor ou autora, uma obra entra em domínio público. Ocorre que o diário possui três versões.

A primeira são os escritos originais de Anne.

A segunda é a que a adolescent­e reescreveu após ouvir o ministro Gerrit Bolkestein (Educação, Arte e Ciência) solicitar, num pronunciam­ento no rádio, que as pessoas guardassem documentos e testemunho­s sobre o período da ocupação alemã na Holanda. Essa versão contém contos e frases que Anne selecionav­a.

Por fim, a terceira versão é a que seu pai organizou quando recebeu os diários. Ele então preparou uma espécie de seleção com partes das outras duas versões. Como Otto Frank morreu em 1980, a rigor os direitos de autor só se encerrarão em 2050.

Independen­temente dessa questão, o “Diário de Anne Frank” continuará a admirar gerações, para que nunca esqueçam que a barbárie sempre está à nossa espreita — num discurso racista ou nas ideias que propagam a insídia e a arrogância, lenha que acende a fogueira dos totalitari­smos.

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Primeira edição americana, com título ‘Anne Frank: o diário de uma jovem’ e introdução de Eleanor Roosevelt
‘Anne Frank: The Diary of a Young Girl’ (1952) Primeira edição americana, com título ‘Anne Frank: o diário de uma jovem’ e introdução de Eleanor Roosevelt
 ?? Capa da primeira edição do diário, em holandês; o título significa ‘o anexo secreto’ ?? ‘Het Achterhuis’ (1947)
Capa da primeira edição do diário, em holandês; o título significa ‘o anexo secreto’ ‘Het Achterhuis’ (1947)

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