Folha de S.Paulo

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- Por Ana Margarida de Carvalho Escritora e jornalista portuguesa Ilustração Bárbara Scarambone Artista plástica

O sonho dos condenados (três minutos antes de acordarem)

Quando eu comecei a pôr vulto no mundo, já ele estava escangalha­do assim, baloiçante e instável, como uma cadeira coxa. Não era agora o mais malfadado filho do meu pai que iria meter-se a carpinteir­á-lo melhor. Isto sonhava o náufrago que estava a dizer, e ao tempo que soltava palavra media o tom afectado, e insuportav­elmente pretensios­o, como se redigisse uma composição nos tempos da escola, nos modos e nos termos com que se dirigia a uma multidão de meninos pretos, magríssimo­s, só olhos na cara, e eles inquiriam-no e culpavam-no, e pulavam por todo o lado, aos pinchos, aparições súbitas, debaixo da cama, de trás de um quadro, na ombreira da porta, calcando insolentes a mancha sanguinole­nta,

cuidado, não pisem o escaravelh­o negro de sangue morto,

as pálpebras imóveis desdenhava­m do solo sagrado, multiplica­vamse, puxavam-no com as mãos brandas pelas calças e pelas abas do casaco. Muitas mãos leves fazem um dedo de lenhador. Ele recuava, deixava-se encurralar, confinado a um canto húmido do quarto, que cedia, madeira dissolvent­e, areia molhada, debaixo dos pés, os meninos a brotarem pela assoalhada numa sucessão inquebrant­ável, a daremlhe toques abruptos, ferroadas de abelha.

Sempre cabe a ira numa formiga,

e a Nunzio soou-lhe familiar esta expressão, já com um grau de sufoco que o impedia de oxigenar o cérebro e raciocinar com nexo. Os olhos de pretinho agrediam-no, alvo de fisgas da molecada,

por favor, na cabeça não,

e eles tomavam-lhe o espaço, esgotavam-lhe o ar, assaltavam-lhe o entendimen­to… Tentava tossir para depois aspirar uma golfada de ar, o corpo não lhe obedecia e, na urgência da aflição, deixou-se urinar, as calças a escurecere­m, molhado até à cintura, perante o riso sarcástico do pai, que convidava toda a gente da fazenda, irmãos, vizinhos, escravos, serviçais, a velha cadela descadeira­da, a juntarem-se à faustosa troça. Nunzio queria levantar-se, fugir, livrar-se do enxovalho, mas as gargalhada­s atordoavam-no com um estampido embrulhado, ora vinha, ora ia numa cadência musical, como uma batucada, e enquanto a casquinada tardava, folgava o amor-próprio, logo o submergiam de galhofa, o pai mantinha-o preso ao chão, a prensar-lhe roupas com a prepotênci­a da bota de montar. E a urina a aquecer-lhe as calças, ao contrário, a começar nos pés até à linha da cintura. Para disfarçar, de modo que o pai não reparasse, aproveitou a sua magreza e, numa contorção rápida, esgueirou-se da camisa e tentou escapar de rastos, a cabeça a arder-lhe com a fricção no soalho, se ao menos estivesse de pé poderia cair,

e assim cair em si.

A posição horizontal só o atrapalhav­a e arranhava, via-se na pedra agreste de castigar a roupa, de tanto ser esfregado pelas diligentes mãos de dona Benedita, solícita vizinha que lavava a roupa e cuidava do gaiato do viúvo, primores de pretendent­e, com o passar dos anos esmorecia a esperança e o esmero, e tantas vezes o pequeno Nunzio ia vestido para o tanque, ela esfregava-lhe os fundilhos dos calções e os joelhos encardidos de uma só vez, em economia de tarefas, sem uma palavra, em gestos maquinais, e o moleque muito quieto, já na ciência do ritual, na antecipaçã­o da mão que o empurrava para o fundo, entre lençóis, ceroulas e a roupa interior da família inteira, e o chocalhava pelos cabelos debaixo de água, se estrebucha­sse muito, era tácita a apneia prolongada,

castigo silencioso e molhado,

bem ciente do ardor se abrisse os olhos na água lívida de sabão. A mulher vizinha, lavadeira oferecida, punha-o a secar, à torreira, com as roupas encharcada­s no corpo, atado a uma estaca com uma corda que lhe passava pelas axilas, para não se tingir de terra, a sentir a condensaçã­o a libertar-se e a humidade a entranhar-se-lhe até aos ossos. Mais tarde, lá aparecia a dona Benedita ataviada, a apanhar a roupa do estendal e a apalpar os braços do pequeno, a avaliar da humidade, a dar esticões na sua camisa para desfazer os vincos, e apresentav­a-o ao pai, ao fim do dia, no portão da roça, de mão dada, entregue pessoalmen­te ao domicílio, a roupa num tabuleiro amparado na anca e o miúdo a cheirar a sabão, com o cabelo cor de açúcar mascavado penteado para trás, composto com o cuspo da asseada senhora, que aviava a limpeza do corpo e do invólucro de uma assentada. Vinha-lhe com o nariz sempre pelado pelo sol e de pele assada entre as pernas, o que lhe dava um andar trémulo, ridículo, notado pelo pai, que lamentava aquele filho tardio, raquítico, que lhe levara a mulher no parto com quarenta anos de idade e dez filhos criados.

Mais dera ter-se salvado a haste que o fruto. E dona Benedita assentia, reveses do destino,

o miúdo saíra-lhe de ruim criação, mas que ela dava conta do recado, ele que não se apoquentas­se, que estava ali para toda a serventia do senhor capitão, não só da higiene do filho adiado, ela e a senhora sua esposa,

que a terra lhe seja leve,

eram como irmãs, tudo confiavam uma à outra, e já nem os seus desejos de macho precisava de adivinhar,

sabia-os de cor,

e arreganhav­a atrevida a beiçola manca de incisivos, o capitão, esquecido do garoto, já vagueava os olhos por outras mulatas, por outros quadris, por outras paisagens mais aprazíveis do que as gengivas despidas da dona Benedita.

Â[SOBRE O TEXTO] ”Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato”, segundo romance da autora portuguesa, foi finalista do Prêmio Oceanos no ano passado e sai no Brasil em julho pela Dublinense. Na obra, que se passa no final do século 19, um navio negreiro clandestin­o naufraga na costa brasileira.

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