Folha de S.Paulo

Mostra explora desejo crescente do homem tecnológic­o de viver na natureza

Evento de arquitetur­a e decoração expõe em SP projetos afinados com o conceito de biofilia: é o instinto de preservaçã­o que bate na porta de casa

- -Michele Oliveira

são paulo A escolha do tema “casa viva” deixou a mostra Casacor deste ano ainda mais verde, com muitos materiais orgânicos e tons terrosos.

Essas tendências já circulavam na exposição de 2017, quando o tema “foco no essencial” foi interpreta­do por arquitetos e designers de interiores como uma oportunida­de de renovar o vínculo do ato de morar com a natureza. Agora, essa relação aparece de forma explícita na maioria dos 80 ambientes do evento, que vai até o dia 29 de julho no Jockey Club de São Paulo.

Diretora da mostra desde 2014 e jornalista de arquitetur­a e decoração há quase 30 anos, Lívia Pedreira diz que o ponto de partida foi a percepção de que o conceito de biofilia está se manifestan­do de modo contundent­e nas casas, na moda e na alimentaçã­o.

Disseminad­o nos anos 1980 pelo biólogo norte-americano Edward O. Wilson, o termo significa amor à vida e se refere a uma ligação instintiva, ligada à autopreser­vação, do homem com a natureza.

“Isso se completa com o impacto da tecnologia em nossas vidas. À medida que nos conectamos mais rapidament­e com o mundo, mais vontade sentimos de estar perto da natureza. E não é só perto do verde. A tendência é trazer vida: ter animais, preparar e cozinhar o alimento, estar perto do fogo”, diz Lívia.

Logo no início do percurso oficial, o visitante se depara com quatro “casas vivas”, assinadas pelos escritório­s Triplex, Marina Linhares, Paola Ribeiro e Suíte. Foram construída­s ao redor de árvores existentes na área, forçando a integração com os jardins.

“O conceito partiu do flamboyant que estava dentro do espaço. Em vez de esconder, fizemos a casa e a paleta de cores girarem em torno dele”, diz Daniela Frugiuele, do Suíte.

O projeto, com 280 m², permitiu que a árvore ocupasse uma ala expressiva da área de estar, uma integração de sala e cozinha que se abre para o jardim. Móveis e objetos têm tons de marrom, laranja, rosa e verde e materiais como pedra, couro, juta, algodão, madeira, fungos de árvores desidratad­os e sementes.

Com 56 m², a “casa menir”, do Très Arquitetur­a, também fez uso de materiais naturais e rústicos no ambiente que reúne estar, quarto, cozinha, banheiro e jardim. O espaço não tem árvore dentro, mas apresenta um sistema de horta hidropônic­a que vai funcionar de verdade durante a mostra.

Dispostas em canos de PVC perfurados, as hortaliças são alimentada­s pela água que circula impulsiona­da por uma bomba. A solução foi implantada pelo projeto Fazu, startup que atua com ONGs para tornar comunidade­s mais autossufic­ientes e com menos agrotóxico na comida.

Uns intensific­aram a relação com a natureza, outros trabalham com a ideia de memória.

Nildo José fala de luto em seu “loft ninho”. São duas caixas de madeira, uma com a cozinha e outra que reúne sala, quarto, banheiro e jardim suspenso. O ambiente de cores neutras fica ainda mais leve com a luz que vem de uma das janelas. “Minha ideia de casa viva é resgatar o ninho como espaço de arquitetur­a afetiva e, por meio da sua casa, você se restabelec­er e se reconectar consigo mesmo”, diz.

Os objetos em forma ou que retratam corações foram feitos, segundo ele, por artistas em momentos de separação ou morte. “A dor faz parte da vida. Temos que entender.”

Já o escritório Triart explorou a memória do próprio Jockey, inaugurado em 1941, para criar a “cozinha matriz”, com 40 m². Os arquitetos mantiveram o arco original na parede e optaram por descascála, revelando camadas de tinta até chegar ao concreto. “Não quisemos maquiar o lugar”, conta André Bacalov.

Gustavo Neves foi outro que escolheu realçar as condições existentes em seu espaço de 200 m², a “casa neshamah”. Em vez de colocar piso novo, o arquiteto interferiu na aparência do contrapiso do Jockey lixando, manchando com ácido e impermeabi­lizando.

Materiais rústicos e cores escuras marcam o ambiente. A parede, revestida com manta metálica e massa de concreto que mistura pedras e resinas, tem volumes e texturas irregulare­s. As mesas são feitas de pedras brutas e os metais aparecem sem polimento.

“Trouxe a casa para uma dimensão mais orgânica e espiritual, como se fosse ela mesma um organismo vivo.”

A Casacor é laboratóri­o para profission­ais e fornecedor­es —que testam ali suas apostas e tentam sentir a adesão do mercado—, lugar de pesquisa para quem atua no segmento e, cada vez mais, um passeio para quem busca ideias para sua casa.

Do público de cerca de 100 mil pessoas de 2017, 45% não era profission­al da área. “A mostra é para inspirar. Tem desde alguém fotografan­do um detalhe para copiar até outro que se identifica com o trabalho de um profission­al e decide fazer projeto com ele”, diz Lívia. Seja qual for o caso, ela recomenda que o visitante reserve uma tarde para circular pelos 17 mil m².

Não é só vontade de estar perto do verde. A tendência é trazer vida para dentro: ter animais de estimação, preparar e cozinhar o alimento, estar perto do fogo

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Gustavo Neves escolheu cores escuras e materiais brutos para imaginar a casa como um ser vivo. O piso do Jockey foi lixado e manchado com ácido, e a parede é de massa de concreto e pedras
 ??  ?? A primeira casa do percurso é assinada pelo escritório Triplex, que escolheu muitos materiais rústicos para compor a ideia de um refúgio; o piso é de madeira carvalho, as portas pivotantes são de peroba e palha natural e o teto tem toras de eucalipto e...
A primeira casa do percurso é assinada pelo escritório Triplex, que escolheu muitos materiais rústicos para compor a ideia de um refúgio; o piso é de madeira carvalho, as portas pivotantes são de peroba e palha natural e o teto tem toras de eucalipto e...
 ?? Gabriel Cabral/Folhapress ?? Nildo José organizou seu loft em duas alas, uma para a cozinha e outra para a área íntima (acima), tudo revestido de madeira e decorado com cores claras; sobre o quarto e o banheiro, o jardim foi pensado para ser usado como espaço de meditação
Gabriel Cabral/Folhapress Nildo José organizou seu loft em duas alas, uma para a cozinha e outra para a área íntima (acima), tudo revestido de madeira e decorado com cores claras; sobre o quarto e o banheiro, o jardim foi pensado para ser usado como espaço de meditação
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Fotos Divulgação No projeto do escritório Suíte, o tronco do flamboyant determinou a escolha dos tons terrosos; os materiais naturais, como pedra-sabão, madeira e juta, predominam e aparecem ao lado de sementes e fungos

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