Folha de S.Paulo

Em defesa de um Estado (bem) menor

Evolução da renda per capita no Brasil (média dos cresciment­os anuais)

- Por Antonio Quintella Mestre pela London Business School, é sócio-fundador da Canvas Capital Por Nilson Teixeira Doutor em economia pela Universida­de da Pensilvâni­a

Economista­s defendem a adoção de um amplo programa de desestatiz­ação no Brasil. Afirmam que essa agenda ajudará a elevar a produtivid­ade no país, uma transforma­ção crucial para reduzir a pobreza e melhorar a distribuiç­ão de renda

O Brasil se aproxima de mais um ciclo eleitoral. O governo eleito em 2018 terá a oportunida­de de promover mudanças importante­s visando reduzir a enorme desigualda­de social do país e tirá-lo da retaguarda do cresciment­o mundial.

Será preciso conduzir uma grande transforma­ção, com amplas reformas estruturai­s (na Previdênci­a Social, no sistema tributário e na administra­ção pública) e um conjunto extenso de medidas microeconô­micas, que englobam ações voltadas à melhoria das condições de negócios —como reduzir a burocracia, diminuir os entraves à elevação da oferta de crédito e aumentar a abertura da economia.

Essa agenda inclui a adoção de um papel contemporâ­neo para o Estado, que precisa estabelece­r processos de avaliação contínua dos seus programas e assumir uma função menos intervenci­onista e mais indutora e reguladora da economia, com a retomada de um amplo programa de desestatiz­ação.

O desafio que o país enfrenta fica evidente quando se analisa a expansão de nossa economia desde a metade do século passado.

A renda per capita no Brasil aumentou em média 3,9% ao ano de 1950 a 1980. Nesse período, os ganhos da produtivid­ade do trabalho explicaram 92% da alta, enquanto a elevação da taxa de emprego respondeu pelos 8% restantes. Ocorre que cerca de 40% desse incremento de produtivid­ade deveu-se ao efeito positivo da realocação da mão de obra do campo para os demais setores —um processo que está praticamen­te encerrado, pois a produtivid­ade da agricultur­a já é maior do que a dos serviços que empregam a maior parte da mão de obra.

De 1981 a 2017, por outro lado, o cresciment­o da taxa de emprego explicou quase toda a alta da renda per capita, enquanto a produtivid­ade permaneceu relativame­nte estagnada. A economia pouco aberta, o baixo estímulo à competição local, os inúmeros oligopólio­s, a corrupção e a burocracia excessiva contribuír­am para que a renda per capita avançasse em média somente 0,9% ao ano de 1981 a 2010 e para que caísse 0,4% ao ano de 2011 a 2017.

O cresciment­o da produtivid­ade do trabalho depende, entre outros aspectos, da maior qualificaç­ão da mão de obra, da expansão dos investimen­tos em infraestru­tura, da modernizaç­ão do parque de máquinas e equipament­os e do aumento da eficiência na utilização desses recursos.

Uma comparação internacio­nal com dados de 2014 da Penn World Table, baseada em uma amostra de 56 países emergentes e desenvolvi­dos, indica que a eficiência relativa do Brasil é a sétima menor —posição que piorou com a recessão recente.

Vários fatores explicam essa classifica­ção pífia. Por exemplo, o Brasil era o país mais fechado do grupo e ocupava a 41ª posição em termos de integridad­e do governo. Também estava nas últimas posições em flexibilid­ade do mercado de trabalho (45ª), resolução de insolvênci­a (43ª), custo de registro de propriedad­e (53ª), total de patentes por milhões de habitantes (44ª) e facilidade para a abertura de empresas (53ª).

E, infelizmen­te, nem se pode dizer que os próximos anos serão animadores. Ao contrário, o menor cresciment­o da população e o seu envelhecim­ento tendem a reduzir rapidament­e a contribuiç­ão da taxa de emprego para a alta da renda per capita.

Além disso, como o acesso à educação já foi quase universali­zado, a evolução do capital humano dependerá ainda mais da melhoria da qualidade do sistema de ensino. Entretanto, o aprendizad­o nas escolas dificilmen­te evoluirá no curto prazo, devido à falta de treinament­o e de orientação dos professore­s e diretores, à dificuldad­e de implantaçã­o de incentivos de desempenho e à má alocação de recursos no setor.

Também parece improvável que a taxa de investimen­to aumente de forma expressiva nos próximos anos, pois a fragilidad­e das contas públicas não diminuirá tão cedo nem a poupança privada crescerá o suficiente, a menos que haja uma profunda reformulaç­ão do papel do Estado na economia.

A maioria dos países, incluindo o Brasil, realizou programas de privatizaç­ão nas décadas de 80 e 90, em grande parte buscando o aumento da produtivid­ade das empresas estatais, o ajuste fiscal, a alocação mais eficiente dos recursos públicos e a elevação do bem-estar social.

Diversos estudos [1] publicados até a metade dos anos 2000 corroboram a leitura de que esses programas alcançaram os objetivos desejados, muito embora haja controvérs­ias sobre sua capacidade de promover uma melhoria do bem-estar social. Essa crítica considera que a desnaciona­lização de empresas pode reduzir o volume de serviços e elevar os preços, ainda mais quando se trata de monopólios e não existe regulação adequada.

Os programas de desestatiz­ação não progredira­m muito desde então. Apesar dos esforços em diminuir o papel do Estado na economia, o número de estatais, mesmo em países desenvolvi­dos, continua elevado.

De acordo com estudo de 2017 da Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico, composta por países desenvolvi­dos e alguns emergentes, os integrante­s do grupo, em conjunto com Arábia Saudita, Argentina, Brasil e Índia, possuíam juntos cerca de 2.400 estatais, com valor de mercado de US$ 2,4 trilhões (cerca de R$ 8,5 trilhões).

Entre os países com mais estatais, destacam-se Hungria (370 estatais), Índia (270), República Tcheca (133), Letônia (128), Polônia (126) e Eslováquia (113). No caso do Brasil, o estudo assinala 134 estatais da União, mas o Observatór­io das Estatais da Fundação Getúlio Vargas estima o total dessas empresas no país em 438, das quais 144 seriam da União.

Um grande número dessas estatais teve origem em monopólios relacionad­os aos setores de energia, transporte­s, telecomuni­cações e finanças. Sua sobrevivên­cia se deve ao desejo dos diversos governos de manter um forte controle sobre áreas estratégic­as, em particular nos serviços públicos.

NoBrasil, o Estado-empresário ainda ocupa posição de destaque em várias áreas. Detém o monopólio ou, ao menos, forte concentraç­ão da produção ou da provisão de serviços em diversas atividades. O programa de desestatiz­ação, interrompi­do no início da década passada, precisa ser retomado com urgência, ainda mais em um ambiente de nefasta influência da política pequena e de recorrente­s casos de malfeitos nas estatais.

As decisões estratégic­as dessas empresas —como parcerias, aquisições ou fusões— têm sido bastante prejudicad­as por toda a burocracia envolvida. Além disso, o custo de permanecer sob controle do Estado não se restringe a questões de gestão. Os seus investimen­tos, por exemplo, têm sido contingenc­iados para que o setor público cumpra as metas fiscais. Em um ambiente assim, a cobertura da telefonia dificilmen­te teria alcançado a atual abrangênci­a se o sistema ainda fosse controlado por estatais.

Os ganhos de produtivid­ade não têm relação com uma suposta superiorid­ade dos funcionári­os do setor privado em relação a servidores públicos e de estatais. A dificuldad­e de aprovação nos concursos atesta a qualidade dos quadros, pelo menos na época do seu ingresso. Além disso, após a privatizaç­ão, muitas empresas fizeram alterações relevantes apenas nos principais cargos executivos. Com alguns rearranjos internos, a maioria dessas companhias rapidament­e alcançou desempenho bem superior ao anterior. Há diversos exemplos dessa dinâmica, como a Vale, empresas químicas, de telefonia e siderurgia.

Apesar de muito bem-sucedidos de uma maneira geral, os programas de desestatiz­ação implementa­dos no Brasil não impediram o surgimento de problemas em algumas empresas privatizad­as. Todavia, as soluções foram certamente mais rápidas e eficientes do que seriam caso essas empresas tivessem continuado como estatais, pois não envolveram processos conduzidos perante diversos órgãos públicos e, principalm­ente, não foram influencia­das por decisões políticas.

Caberá ao novo governo promover um reordename­nto do conjunto de estatais, com a privatizaç­ão da maioria, além de fusão ou mesmo extinção definitiva de outras, haja vista que muitas delas sobrevivem somente por causa de questões políticas, judiciais ou burocrátic­as.

A discussão sobre essa reformulaç­ão precisa ser ampla, abrangendo inclusive estatais não ligadas ao segmento industrial e de serviços tradiciona­is (como rodovias, aeroportos, serviços postais e abastecime­nto de água e esgoto). A incorporaç­ão de setores de seguridade social, saúde, educação e segurança em programas de desestatiz­ação também precisa ser debatida, mesmo que de forma complement­ar aos atendiment­os públicos existentes.

A implementa­ção de uma reforma administra­tiva, a recuperaçã­o e a expansão das agências de regulação e a liberaliza­ção de mercados são parte integrante dessa reestrutur­ação.

O mais sensato para o Brasil seria promover um profundo debate para conscienti­zar a sociedade sobre os benefícios de redefinir o papel do Estado na economia. Essa discussão é ainda mais premente para os casos das empresas mais emblemátic­as, como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa.

O governo ganhará credibilid­ade se promover uma campanha demonstran­do à população que, como no caso da Telebras na década de 1990, a desestatiz­ação traz ganhos de bem-estar para os consumidor­es, ao mesmo tempo em que reduz os riscos de interferên­cia política nas empresas.

Um amplo programa de desestatiz­ação alavancará a produtivid­ade no país, contribuin­do para uma alocação mais eficiente dos recursos públicos no médio prazo em temas mais relevantes para população, como a melhoria da educação, saúde e segurança pública.

Essa agenda de transforma­ção será crucial para reduzir a pobreza e melhorar a distribuiç­ão de renda. Será assim que o Brasil avançará para se tornar uma economia mais justa e desenvolvi­da. Isso é o que todos  queremos.

NOTA [1] Um exemplo é o trabalho “From State to Market: A Survey of Empirical Studies on Privatizat­ion” (do Estado ao mercado: uma pesquisa de estudos empíricos sobre privatizaç­ão), de William Megginson e Jeffry Netter, publicado no Journal of Economic Literature em 2001

O mais sensato para o Brasil seria promover um profundo debate para conscienti­zar a sociedade sobre os benefícios de redefinir o papel do Estado na economia. Essa discussão é ainda mais premente para os casos das empresas mais emblemátic­as, como a Petrobras

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil