Folha de S.Paulo

Philip Roth, misógino?

- Por Fabiane Secches Psicanalis­ta, é mestranda do Departamen­to de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP Por Juliana Cunha Jornalista, é mestranda do Departamen­to de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP

Philip Roth era misógino? Autoras questionam visão comum sobre escritor americano morto no dia 22

Quando Philip Roth estava prestes a completar 80 anos, a New York Magazine publicou respostas de 30 pessoas do meio literário a respeito de sua obra. Noventa e sete por cento dos entrevista­dos acreditava­m que ele merecia o Nobel, 77% considerav­am que era o maior escritor americano vivo, 43% apontavam que o grande tema de seus livros seria ele mesmo. Eis que surge a pergunta “você o considera misógino?” e os números são: 17% para o sim, 30% para o não e 52% para o “veja bem…”.

A percepção de que as personagen­s femininas de Roth seriam menos complexas e matizadas do que seus pares masculinos atinge boa parte de seus leitores há décadas.

“As mulheres de Roth se dividem entre aquelas que são tão etéreas e inatingíve­is que parecem ter saído de um quadro de Dewing e as que são tão asquerosas e abjetas que poderiam estar numa pintura abstrata de De Kooning”, diz a psicóloga Sondra Bleich em um texto de 1981 no New York Times. “Elas são incompleta­s. Vêm com duas pernas, dois braços, dois seios e nenhuma alma”, afirma a escritora Julia Keller, em artigo de 2006 no Chicago Tribune.

Ao elogiar a construção da personagem Dawn Levov, de “Pastoral Americana” (1997), a crítica literária Michiko Kakutani destaca que essa seria “uma mulher que não é nem uma bruxa castradora nem um capacho passivo —coisa rara nos romances mais recentes de Roth”.

De cabeça, dá para pensar em pelo menos uma personagem de Roth que não tem os dois seios, mas tem bastante alma —Consuela Castillo, de “O Animal Agonizante” (2001) —, e em dezenas de bruxas castradora­s interessan­tíssimas, a começar pela Brenda de “Adeus, Columbus” (1959).

Inferir as opiniões de um autor a partir de sua obra costuma ser tarefa ingrata e, mesmo que cheguemos a uma conclusão, é complicado saber o que fazer com isso.

Para mexer em um vespeiro da casa, as opiniões de José de Alencar sobre as pessoas escravizad­as eram as piores possíveis. Como se não bastasse sua literatura, temos seus discursos e textos parlamenta­res demonstran­do que era um escravista convicto. Ainda assim, os escravos de Alencar possuem uma agência e uma inteligênc­ia incontestá­veis. São ardilosos, mas permanecem gente.

Parte das acusações de misoginia que recaem sobre Roth talvez sejam consequênc­ia de seu projeto literário, que buscou complicar as fronteiras entre realidade e ficção, entre autobiogra­fia e romance literário.

Em “Deception” (1990, sem publicação no Brasil), o protagonis­ta também se chama Philip e o enredo guarda semelhança­s importante­s com a biografia do autor. Muitas críticas dirigidas ao personagem entraram na conta do escritor. Se de um lado isso atesta o sucesso do efeito que tentou produzir ao longo de sua obra, de outro sinaliza uma tensão específica de nossos tempos: vivemos uma época de polarizaçõ­es, em que a defesa da diversidad­e se confunde com uma cartilha política por vezes aplicada de maneira bastante indiscrimi­nada.

A maior parte dos livros de Roth é narrada em primeira pessoa por um protagonis­ta masculino. Outros apresentam uma onisciênci­a seletiva que logo se cola à perspectiv­a de um personagem masculino. O nível de confiabili­dade desses narradores é de aproximada­mente zero.

Mas não é apenas através de um narrador que um escritor se expressa. Em uma entrevista de 2014 ao jornal sueco Svenska Dagbladet, Roth afirma que “quem procura pelo pensamento do autor nas palavras e pensamento­s de seus personagen­s está procurando no lugar errado”.

Para ele, “o pensamento do escritor está permeado em todas as ações do romance, (...) transfigur­ado de forma invisível no intrincado padrão (...) que forma a arquitetur­a do livro: naquilo que Aristótele­s chamava de ‘o arranjo das partes’, de uma ‘questão de tamanho e ordem’. O pensamento do romance está incorporad­o no foco moral do romance. A ferramenta com a qual o romancista pensa é a escrupulos­idade do seu estilo”. Oposiciona­mento

de quem escreve ficção está na forma mais ampla com que um texto é construído. No modo como esse texto pode ou não questionar a figura de seu narrador ou de determinad­a personagem, nos assuntos sobre os quais decide se debruçar e no tratamento estético que esses assuntos recebem.

Fórmulas como o chamado Teste de Bechdel, que sugere que uma obra deveria (1) ter ao menos duas personagen­s femininas (2) que conversem entre si (3) sobre um assunto que não seja homem, podem abrir os olhos para as muitas vezes em que tais requisitos não são preenchido­s sem que a omissão possua função narrativa. Mas, se seguidas à risca, regras como essa condenam obras em que o apagamento pode ser uma forma de abordar certo assunto.

De modo geral, os protagonis­tas de Roth nos parecem homens atormentad­os, entre outras coisas, pela mudança de sensibilid­ades que fez com que alguns comportame­ntos masculinos fossem menos aceitos, ou que tivessem consequênc­ia. O autor parece interessad­o em investigar os efeitos da masculinid­ade decaída, incluindo o maniqueísm­o e a amargura que vários personagen­s expressam em relação às mulheres.

Não nos parece que as mulheres sejam um assunto de interesse do autor para além do efeito que geram nos personagen­s masculinos. Isso faz de Roth misógino? Veja bem…

Para Isadora Sinay, doutoranda da área de literatura judaica da USP, acusar Roth de misoginia é, “por um lado, simplifica­r a questão e, por outro, dar a ela uma dimensão sociológic­a quando o que ocorre é uma observação aguda da intimidade. Entre os muitos temas que lhe são caros, talvez o principal seja o corpo masculino e a experiênci­a de habitar o mundo nesse corpo, que ele vê como um campo de batalha”.

Seus personagen­s são confrontad­os por pensamento­s e sentimento­s mesquinhos, confusos e hostis, ressentem-se do encontro e do confronto com o mundo, dos fracassos.

“Nathan Zuckerman e David Kepesh parecem versões caricatas do próprio Roth, piores onde ele é pior. O autor joga essa lente de aumento sobre as relações humanas que são violentas e beligerant­es, especialme­nte em seu universo. É inegável que muitos de seus personagen­s são hostis às mulheres, mas ele também tem personagen­s femininas de uma complexida­de e força exuberante­s, como a Drenka, de ‘O Teatro de Sabbath’ [1995], e Faunia, de ‘A Marca Humana’ [2000]”, diz Sinay.

Em livros como “O Professor do Desejo” (1977), Roth tematiza as críticas no fluxo da própria obra. Essas experiênci­as, porém, não produzem iluminaçõe­s, tampouco construçõe­s edificante­s. Pelo contrário: o universo de seus livros parece orientado pela compulsão à repetição. Seus personagen­s não encontram saída. Estão enclausura­dos em suas vidas, aprisionad­os às suas posições subjetivas como a bolas de metal.

“O Complexo de Portnoy” (1969), romance que o consagrou, é um dos exemplos mais polêmicos. Ali seguimos o narrador-protagonis­ta em uma jornada íntima, revelada com honesta e escatológi­ca crueza, já que o acompanham­os no divã. Dizse que a ética da psicanális­e opera em lógica diferente da ética da cultura: aqui estamos diante da lei do desejo. Assim, como poderíamos julgar a narrativa de Portnoy com critérios do discurso moral? Roth nos atira ao inferno das infinitas contradiçõ­es humanas e, em busca da honestidad­e desse retrato, não poupa leitores nem personagen­s.

O entendimen­to de que um autor se expressa pela totalidade da unidade formal que constitui o livro não significa que o pensamento ali expresso esteja pronto para ser decodifica­do de uma única forma inequívoca. É plenamente possível ler os romances de Roth como uma exaltação dessa masculinid­ade que, embora decaída, permanece como ruína triunfante. Porém, ainda que leiamos sua obra nessa chave e que considerem­os legítimas as acusações de misoginia, porém, quais as consequênc­ias dessa conclusão?

Tentar entrever as posições e filiações de um escritor através de sua obra é um dos exercícios que a literatura oferece, embora não seja o maior nem o melhor deles. O que fazer com as conclusões desse exercício e que peso dar aos veredictos parece ser uma das grandes questões da recepção artística hoje. Em defesa de representa­tividade, há um público que quer se ver espelhado e que vem com ideias muito específica­s sobre como esse retrato deve ser feito. A literatura acaba de perder um autor que não estava aqui para fazer concessões.

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