Folha de S.Paulo

Phillip Roth

- Marcos Lisboa Doutor em economia, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e presidente do Insper

Phillip Roth morreu. Seus muitos livros permitiram-nos conhecer outras vidas e nos educaram sobre as nossas imperfeiçõ­es.

J. M. Coetzee descreveu um trecho de “Homem Comum”, uma das últimas novelas de Roth, em que o protagonis­ta, já idoso, visita o túmulo de seus pais e conversa com o coveiro, “um homem que possui um profundo orgulho profission­al do seu trabalho, e obtém dele um relato completo, claro e conciso sobre como uma boa cova é escavada”.

“Esse é o homem, ‘ele’ reflete, que quando o tempo chegar, irá cavar a sua cova, garantir que o seu caixão esteja bem assentado, e, uma vez que os enlutados tenham partido, preencherá a terra sobre ele. Ele se despede do coveiro —seu coveiro— com inesperada leveza: ‘Eu quero agradecer... Você não poderia ter descrito as coisas de forma mais palpável. É uma boa educação para uma pessoa mais velha.’”

“Esse simples mas lindamente escrito episódio...de fato proporcion­a uma boa educação, e não apenas para pessoas mais velhas: como cavar uma cova, como encarar a morte, tudo de uma só vez.”

Os romances de Roth são por vezes imperfeito­s, alguns com fins apressados, como se, cansado da narrativa, resolvesse declará-la terminada.

Os dramas de Shakespear­e ou os romances de Dostoiévsk­i também apresentam imperfeiçõ­es. Não é isso que os aproxima, mas sim as páginas inesperada­s que nos fazem encontrar o transcende­nte. (Faulkner é perfeito, mas não conta. Afinal, não pode ter sido humano.)

Alguns têm a Bíblia ou o Alcorão para acalmar a sua alma, livros repletos de contradiçõ­es, porém surpreende­ntes em seus momentos sublimes. Na minha estante, Roth talvez seja o equivalent­e ao Evangelho de Lucas, que conta histórias com compaixão inesperada sobre personagen­s conturbada­s antes do desfecho que nos consola sobre o nosso próprio fim.

Seus romances descrevem os desencontr­os das relações afetivas em meio a muitas referência­s disfarçada­s a outros escritores. Por vezes, consegue ser surpreende­ntemente divertido.

As personagen­s de Roth nos convidam à sua intimidade, o que nem sempre deixa recordaçõe­s agradáveis. A sua literatura parece um espelho ampliado em que assistimos a nós mesmos com excesso de luz.

A humanidade é por demais imperfeita e, no entanto, Roth nos comove com a descrição de pessoas atrapalhad­as no afeto, porém cuidadosas com a execução do seu ofício, como a fabricação de luvas. Vale ler “Patrimônio” em que conta a longa despedida de seu pai.

Sem a grandeza dramática dos velhos épicos, aprendemos com Roth a como cavar uma cova, a enterrar os nossos entes queridos e a aceitar que, em algum momento, seremos os próximos a serem enterrados.

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