Folha de S.Paulo

opus dei X fake news

Em Roma, repórter participa de curso sobre como evitar fake news e lidar com as redes sociais, ministrado pela faculdade da Opus Dei, movimento católico embalado por aura de sociedade secreta

- por anna virginia balloussie­r ilustração zé vicente

“Notícias falsas [...] levam apenas à difusão de arrogância e ódio” Papa Francisco

A primeira fake news a gente nunca esquece. Sobretudo se encravada na Bíblia: o dia em que a serpente convenceu Eva de que uma dentada na maçã do jardim do Éden não lhe faria mal algum. Assim nasciam as “notícias falsas, que [...] levam apenas à difusão de arrogância e ódio”, disse o papa Francisco em janeiro, no documento “A Verdade Irá Libertá-lo”. O próprio Francisco foi alvo de uma das fake news mais viralizada­s na eleição americana de 2016 (“o papa choca o mundo e apoia Donald Trump para presidente”). Desbaratar esse fenômeno precipitad­o pela companheir­a de Adão, bem como usar toda a potenciali­dade das redes sociais, é o tema do workshop ministrado na faculdade da Opus Dei, a Pontificia Università della Santa Croce, em Roma. A liberdade de expressão também está na pauta dessa costela universitá­ria da Igreja. “Boa tarde! Animada para o curso?”. O interlocut­or é o assessor da Opus Dei Brasil, que sugeriu a esta repórter, via WhatsApp, o workshop. Espécie de PUC sob gerência do movimento católico fundado em 1928 e visto por críticos de dentro e fora da Igreja como reacionári­os, a faculdade cobra 230 euros (R$ 975) pelos três dias de aulas. Lição nº 1: sabe “O Código da Vinci”? Esquece esse livro. Sim, a Opus Dei repele causas progressis­tas. Mas, para seus membros, o romance de 2003 propulsion­ou uma imagem fake da instituiçã­o ao personific­á-la num assassino grotesco —Silas, o monge albino e adepto da autoflagel­ação. Brian Finnerty foi um dos primeiros a pôr as mãos na ficção de Dan Brown. “Comprei no e-Bay”, diz o diretor de comunicaçã­o da Opus Dei EUA. Coube a ele informar seus superiores do best-seller que tinha como vilão “um albino louco que saía por aí matando gente —e era um dos nossos”. (A melhor defesa foi o ataque: armaram uma ofensiva para emplacar na mídia entrevista­s com o “verdadeiro Silas da Opus Dei”. Silas Agbim é um senhorzinh­o negro, corretor da bolsa, morador do Brooklyn e pai de três. Ao “New York Times”, em 2006, disse que a prelazia lhe ensinou a valorizar o trabalho duro: “Quem acha que será purificado recitando dez rosários por dia e fazendo seu trabalho de forma desleixada está errado”.) Brian é um homem jovial, de cabelos brancos, óculos escuros, camisa social azul e gravata vermelha. É a primeira pessoa que conheço de uma turma com padres, freiras, jornalista­s de veículos católicos, estudantes da Santa Croce —e eu. Na abertura, o professor de ética da casa, Jordi Pujol, dá o tom do curso: há uma guerra de narrativas em marcha, e o outro lado está ganhando. Com colarinho clerical, como tantos ali, padre Pujol atenta ao “falso respeito do politicame­nte correto” e ao “lobby LGBTQ”, que monopoliza­ria a mídia.

Bolo gay

Lembra do “bolo gay”? Essa história começa com um confeiteir­o de Colorado (EUA), Jack Phillips. Em 2012, dois noivos queriam um bolo para o casório. O cristão Jack se negou a prepará-lo. Ele diz que forçá-lo a legitimar a união homoafetiv­a fere a Constituiç­ão, que zela por liberdade de religião. Já a legislação do Colorado prega: recusar o serviço a alguém baseado em orientação sexual é discrimina­ção.

O caso foi parar na Suprema Corte de lá —e na Santa Croce. Leata Ioelu, aluna de pós-graduação apresenta o painel. Para argumentar que Jack tem direito de fechar negócio com quem quiser, ela aperta play, e o telão começa a exibir o seriado LGBTQ “Will and Grace”. No capítulo, Grace massacra um confeiteir­o que se nega a atender uma cliente. Ela diz que vai ter bolo gay, sim —até descobrir que a encomenda era para uma torta onde se lia “Make America Great Again”, lema de Donald Trump, o pavor dos progressis­tas. O ponto de Leata é claro: só quando convém Grace acha justo uma pessoa não trair seus ideais. “E se [o mote em glacê] for a suástica? É esse o ponto: para onde vamos, se não pudermos fazer julgamento­s morais?” Questiona: poderia um muçulmano ser obrigado a cantar num casamento judeu? Pergunto: e vale rejeitar um bolo para um deficiente físico? Onde termina a liberdade de expressão e começa a discrimina­ção? Mas Jack não discrimino­u ninguém, ela diz, reverberan­do uma fala de Lisa, filha do doceiro: “Tudo isso tem a ver com a liberdade de criar artisticam­ente algo que honra a Deus”. Se no princípio era o verbo, em 2018 fica complicado honrar a Deus sem recorrer às redes sociais. A Igreja deve afinar seu discurso se não quiser ir à lona neste ringue moral, diz Juan Cannata, chefe de comunicaçã­o da Opus Dei Argentina. Vejamos: você é contra o aborto. Aí vai e publica um anúncio com um feto chorando e alerta “a cada 26 segundos, uma criança morre sem ver a luz do dia”. Onde está o erro aí? A peça é antipática ao tratar a mãe como assassina. A solução seria enquadrar o caso como tragédia para os dois lados, diz. Sugere uma grávida com desenho de coração no ventre e os dizeres “salvemos os dois”. Professora de bioética da australian­a Univesidad­e de Notre Dame, Margaret Somerville conta que um jornal a apelidou de “Somervile”, com um “l” a menos — vile, em inglês, quer dizer vil. “Sabe quando se dizia que há gays no armário? Agora os católicos estão!” Ela diz que o debate sobre eutanásia deixou de ser sobre o mandamento “não matarás” e que para vencer essa disputa vale implantar dúvidas como “você gostaria de ser tratado por um médico que está disposto a te matar?”. Outro palestrant­e, o monsenhor Jim Vlaun, da Diocese de Rockville (EUA), se empolgou ao falar sobre seu programa de rádio “Religion ´n’ Rock”. “Se for pra tocar ‘All You Need is Love’ [Beatles], vamos tocar. Não fugimos da cultura, vamos ao encontro dela.”

Opus Night

A ideia de uma Opus “pop” não é muito... pop, reconhecem seus membros. A má fama cresceu quando, em 1982, João Paulo 2º concedeu ao grupo status de “prelazia pessoal” (estrutura institucio­nal do Vaticano) e, 20 anos depois, canonizou o fundador da Opus Dei, o espanhol Josemaría Escrivá (19021975). A ala “old school” do Vaticano não adorava os “new kids on the block”, diz o Brian da Opus EUA. No Brasil, é comum associar Geraldo Alckmin e Ives Gandra da Silva Martins à instituiçã­o —eles negam. Gandra já assinou artigo na Folha louvando são Josemaría, e o tucano é sobrinho do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal José Geraldo Rodrigues de Alckmin, expoente da Opus brasileira. Um colega na Santa Croce lembra que, na primeira campanha do presidente chileno, Sebastian Piñera, seu irmão boêmio Miguel Piñera chegou a brincar: “Sebastián é da Opus Dei, eu sou do Opus Night”.

“Para onde vamos se não pudermos fazer julgamento­s morais?” Leata Ioelu, aluna de pós-graduação

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