Isto não é (só) roupa
Para que serve um desfile? A resposta de que ele existe apenas para vender roupas não encontra mais eco no desenho da costura brasileira e nos eventos de moda. O vaivém de tecidos foi substituído nas últimas temporadas por discussões sobre diversidade, tanto de gênero quanto de raça, e diálogos com o teatro, a música e as artes visuais. Ao mesmo tempo, as imagens de moda criadas para a passarela passaram a contar a história rica em elementos estéticos do Brasil. Em Belo Horizonte, cidade que iniciou a temporada nacional de apresentações no Minas Trend, em abril, um desfile sobre as raízes do cerrado mineiro composto por peças de marcas como Lucas Magalhães, Fatima Scofield e Anne est Folle, fez par com a moda festa produzida no estado. Termômetro do humor dos compradores de multimarcas do país, a feira de negócios teve um incremento de 13% na quantidade de expositores. Ao que parece, o negócio da moda voltou aos trilhos após um período de baixas consecutivas nas vendas.
Novos nomes
Na São Paulo Fashion Week, maior vitrine daquilo que se entende como tendência da estação no país, grifes como Modem, Handred e Beira mostraram, em abril, desprendimento com o conceito de temporalidade da moda. Em sua estreia, a Modem entregou sua versão do minimalismo nacional, e a Handred, o visual da bossa nova misturada à costura marroquina. Os novos nomes da moda, às vezes autodidatas e sempre distantes da máquina de vendas dos grandes grupos, têm papel fundamental no esforço de aproximar a passarela da vida real, longe do estereótipo de glamour inacessível Bom exemplo é o estilista Dinho Batista, um dos designers nacionais que tem ganhado projeção no meio artístico internacional —a cantora
1. luzes do sertão
Modelos com looks de estilistas para o desfile de abertura do Minas Trend, em abril, inspirado no cerrado mineiro
2. da lama ao caos
Detalhe de folha seca bordada na performance de Ronaldo Fraga, na SPFW, cujo tema foi a tragédia ambiental de Mariana (ES)
3. modelo de diversidade
A produtora de moda transexual Renata Bastos desfila coleção de Weider Silveiro, na Casa de Criadores, em outubro de 2017
As imagens de moda criadas para a passarela passaram a contar a história rica em elementos estéticos do Brasil
4. ráfia no tule
As modelos Marina Gomes, Geovana Breunig e Gabriele Frantz, todas da Way Model, posam com looks de ráfia do estilista Dinho Batista
5. artesanato remodelado
Peças com detalhes trançados do desfile da grife Hand Lace, apresentadas no Dragão Fashion Brasil, em Fortaleza (CE) Jennifer Lopez, em seu último clipe “El Anillo”, usou uma peça metalizada do designer, abrigado na grife Maison Alexandrine— e cujo mérito foi aprender sozinho a transformar simplicidade em luxo. Na semana passada, Dinho preteriu o desfile e montou uma exposição de suas peças no palácio da marca, em São Paulo, frequentado por uma elite acostumada às grifes internacionais. Material usado no artesanato brasileiro, a ráfia sintética é a estrela da coleção de coletes, vestidos e macacões, mas vem revestida de tule italiano. Redesenhar o conceito de luxo a partir do uso de matériasprimas incomuns, ele sabe, é mantra da costura mundial. Ele não embarcou sozinho nessa onda. Muitas das marcas que surgem pelo país desconstroem a receita do luxo tradicional ao aplicar tramas típicas brasileiras em coleções desfiladas por modelos de pele miscigenada. A beleza europeizada é outro vício que sumiu das apresentações. Macramê, crochê e renda É no evento cearense Dragão Fashion Brasil, principal plataforma de desfiles do Norte e Nordeste, que esses novos rumos estéticos ficam ainda mais evidentes. O macramê, o crochê e a renda, básicos da artesanalidade tecida por aqui, viraram adorno das peças de banho da marca Hand Lace, dos vestidos rendados da grife Almerinda Maria e dos conjuntos luminosos, vazados a laser para simular a renda, criados pela estilista Gisela Franck. A tônica do evento, em maio, foi unir em um mesmo espaço essas grifes autorais, empreendedores de marcas menores e gigantes da indústria têxtil. O esforço de ligar os pontos da cadeia fez do Dragão a semana de desfiles com o maior número de designers. Foram 38 só na última edição. E quando ocorrera última temporada do circuito de desfiles, a Casa de Criadores, nomes da safra de estilistas jovens baseados em São Paulo iluminarão temas ligados à nova ordem fashion. A Casa trará no próximo mês a moda de boate do estilista Rafael Caetano, a sustentável da grife Neriage e a afrobrasileira de Isaac Silva. Mesmo sem grandes investimentos, os três conseguiram espaço no breno guardar ou padosfash ionistas. O tempo de renovação criativa falado no início desta década parece ter chegado, sem estrelas solitárias, sem o “carão” dos anos 1990 e, principalmente, apoiada em negócios sustentáveis que não resvalam na megalomania do passado recente.
Redesenhar o conceito de luxo a partir do uso de matérias-primas incomuns é mantra da costura mundial