Folha de S.Paulo

Camponês processa empresa alemã por redução de geleiras

Sétimo capítulo da série relata como o degelo aumenta risco de ruptura de lagoas glaciais e pode repetir desastre de 1941 que matou milhares, além de ameaçar segurança hídrica

- -Marcelo Leite e Lalo de Almeida

Juan Victor Morales Moreno, 52, tem um dos empregos mais solitários do mundo. Salvo incursões até o centro de Huaraz nas folgas quinzenais, ele vigia o ano todo a lagoa Palcacocha (4.562 m de altitude), na Cordilheir­a Branca, 100 m abaixo de sua cabana de pedra. O salário é de 2.500 soles (cerca de R$ 2.800). A missão: a cada duas horas, noite ou dia, relatar qualquer perturbaçã­o no lago glacial, por rádio ou telefone de satélite, ao Centro de Operações e Emergência Regional do departamen­to (estado) de Ancash. O trabalho como guardião da montanha castigada pelo aqueciment­o global já dura três anos. Toda sua atenção se volta para as geleiras Palcaraju e Pucaranra, que pendem ameaçadora­s a 600 m acima do espelho d’água. De sua estabilida­de depende a segurança de 25 mil huaracinos que vivem no chamado cone de risco aluvional (cerca de um sexto da população).

Palcacocha ganhou notoriedad­e internacio­nal quando um desses moradores — Saúl Luciano Lliuya— colocou-a no centro de um processo judicial na Alemanha contra a empresa de energia RWE. A ação demanda que a companhia pague uma parcela de 17 mil euros (R$ 68 mil) das obras de segurança na lagoa, com custo total estimado em R$ 20 milhões.

A quantia correspond­e ao quinhão de responsabi­lidade atribuído à RWE (0,47%) por todas as emissões de gases do efeito estufa lançadas no mundo desde 1854, segundo estudo publicado em 2014 por Richard Heede, do Climate Accountabi­lity Institute dos EUA.

Por improvável que pareça, as cortes alemãs deram seguimento ao processo.

A ameaça posta por Palcacocha é concreta. Em 1941, a lagoa tinha volume 30% menor que o atual e causou cerca de 2.000 mortes em Huaraz. Naquela manhã de 13 de dezembro, uma avalanche de pedras e lama cortou a cidade ao meio.

Acredita-se que um bloco dos glaciares se desprendeu e criou uma onda com dezenas de metros de altura. Rompeu-se o dique natural de rochas e terra solta da moraina (depósito de fragmentos transporta­dos pela geleira em movimento).

Restaram então somente 500 mil m³ de água no reservatór­io, o equivalent­e a 200 piscinas olímpicas. Com o contínuo derretimen­to de Palcaraju e Pucaranra, tal volume multiplico­u-se por 34.

“No ano passado, no mês de maio, houve uma avalanche moderada da montanha Palcaraju. Caiu diretament­e na lagoa e produziu uma onda de três metros”, conta o vigilante Victor Morales. “Levou os sifões para a parte esquerda e os amontoou como se fossem espaguete.”

Morales se refere aos dez tubos negros com 25 cm de diâmetro que sugam água do meio da lagoa e a descarrega­m na cabeceira do riacho Cojup. O conjunto oferece um reforço para a tubulação de escoamento sob o dique de 7 m construído depois do terremoto de 1970, que, sozinho, não dá conta de manter a água na cota de segurança em época de chuva e derretimen­to acelerado, de setembro a maio.

Trata-se de um sistema provisório e insuficien­te, afirma o engenheiro Luis Alberto Beltrán Flores. Ele é o consultor do governo regional de Ancash para o projeto de obras de segurança em Palcacocha e outras 22 lagoas glaciais.

A meta é rebaixar o nível de Palcacocha ainda mais. Para afastar o perigo pior, haveria ainda que construir um dique com o triplo de altura (20 m), reforçado com concreto.

Por ora, só os termos de referência para a licitação foram feitos. Falta aprovar um orçamento do governo federal para contratar uma empresa que detalhe o projeto executivo de engenharia.

Ao lado de Beltrán na montanha, Mirtha Cervantes, secretária de Meio Ambiente e Recursos Naturais do governo de Ancash, ressalva que já se iniciou a implantaçã­o de um sistema de alerta precoce à população.

O dispositiv­o envolverá o uso de sensores, sinais sonoros e exercícios de evacuação da zona de risco, no curto prazo de 40 minutos entre um “evento” em Palcacocha e a devastação de Huaraz. Por ora, tudo ainda está nas mãos —ou nos olhos e ouvidos— do guardião Victor Morales.

Depois de passar seu informe por rádio, o vigilante de Palcacocha serve canecas de leite com arroz doce cozido aos visitantes esfalfados pelo impacto da altitude. São 10h da manhã e, ao longe, começa o ronco diário de pequenas avalanches em Palcaraju e Pucaranra deflagrada­s pela temperatur­a em elevação.

Nenhuma alcança a lagoa. O guia de montanha e agricultor Saúl Luciano Lliuya, 37, fala baixo e de modo pausado. Durante entrevista­s, revira os olhos nas órbitas, ao que parece buscando as palavras corretas em espanhol (até os seis anos, só falava quéchua em casa).

Sua contenção destoa da imagem de camponês intrépido, que conduz turistas em segurança pelas paredes de gelo da Cordilheir­a Branca e se aventura a processar uma potência empresaria­l em terras alemãs.

O amor pelas montanhas venceu a timidez, é a sua explicação. Ele as sente correr nas veias como a água do degelo corre pelas “quebradas” (calhas dos riachos glaciais).

O pai era carregador de escaladas. Menino, Luciano ficava fascinado com os equipament­os e as fotografia­s. “Cresci nesse ambiente. Aos 8 anos já caminhava por lá, [na altitude de] 4.500 metros, 4.800 metros”, recorda.

Os três anos de curso para liderar grupos de turistas são um recurso comum das novas gerações para aumentar a renda nos meses secos, de junho a agosto. No restante do ano, Luciano planta e colhe batatas, quinoa, trigo e cevada na propriedad­e da família em Llupa, povoado a 15 minutos de carro do centro de Huaraz.

Na garagem da casa de adobe com dois pisos, o guia tem uma perua Toyota —“station wagon”, como se diz na região— que usa para ir à cidade de noite, para as aulas de inglês, e em serviços de táxi informal. Às vezes dorme na segunda casa, que está terminando de construir em Nova Florida, bairro incluído no cone de risco de Palcacocha.

“Quando comecei a sair como guia, em 2002, vi que tudo era muito lindo. Nos anos seguintes na montanha, encontrava [os glaciares] cada vez menores”, conta.

Ele já havia ouvido falar de aqueciment­o global na escola. Pesquisand­o sobre o descongela­mento, as lagoas e os aluviões, descobriu que havia uma relação com a mudança climática: “Tudo isso é causado pela poluição, pelas indústrias, toda uma cadeia de relações”, afirma.

“Isso te afeta. Estás perdendo algo. Além disso, sabíamos que Palcacocha era uma lagoa que estava em risco, crescendo. Perguntava-me o que deveria fazer. O que vai acontecer quando já não houver montanhas, água suficiente?”

O contínuo derretimen­to de geleiras não cria só o risco emergencia­l de colapso das lagoas glaciais. Elas ameaçam também o futuro do Peru, que ficará sem água para gerar eletricida­de e abastecer a população —um terço da qual vive na capital, Lima, quase inteiramen­te dependente do degelo para dar de beber a seus habitantes.

Em 2014, quando se realizou em Lima a 20ª conferênci­a internacio­nal sobre mudança do clima, Luciano conheceu José Valdivia Roca, da ONG Wayintsik (“nossa casa”, em quéchua). Valdivia lhe apresentou Noah Walker-Crawford, um jovem antropólog­o de família norte-americana nascido na Alemanha, que trabalhava na ONG Germanwatc­h.

Das muitas conversas sobre como reagir à destruição da Cordilheir­a Branca surgiu a ideia de responsabi­lizar os

causadores da mudança do clima. A RWE terminou escolhida por ser a maior emissora de gases do efeito estufa na Europa e porque a Germanwatc­h poderia conseguir assessoria jurídica na Alemanha, sede da empresa de energia.

Luciano diz que, no Peru, é muito perigoso enfrentar uma companhia na Justiça, por exemplo uma mineradora grande: “Processar uma empresa lá [na Alemanha] dava o que pensar. Pensei por um tempo, uns dois meses. Decidi que sim, pois não via outra opção”. A ação começou em 2015.

Por causa dela, o guia-agricultor precisou ir três vezes à Alemanha, o que lhe garantiu alguns olhares atravessad­os no povoado e na cidade. Há quem acredite que Luciano recebe dinheiro para promover a ação, embora os 17 mil euros da causa, caso saia vitoriosa, se destinem aos governos local e regional.

Contrarian­do as expectativ­as do grupo, o processo caminhou. Apesar de recusado em primeira instância num tribunal de Essen, um recurso apreciado em novembro de 2017 numa corte de segunda instância em Hamm levou à decisão de que a causa era plausível perante a lei alemã (embora o tribunal não se tenha pronunciad­o sobre seu mérito).

A RWE rejeitou na ocasião uma oferta de acordo de Luciano referendad­a pela corte. Com isso, o caso entrou numa fase de produção de provas e oitiva de especialis­tas, que pode durar vários meses. Até aqui, os custos da ação que cabem a Luciano foram cobertos por doações para um fundo especialme­nte criado para isso.

Para Luciano, já será uma conquista significat­iva se um causador da mudança climática reconhecer sua responsabi­lidade. Não se trata só do dinheiro, ele justifica, mas de conseguir que os causadores contribuam com o que lhes cabe para as medidas de segurança ou de adaptação perante a mudança do clima.

Os 160 mil km² de glaciares nos Andes peruanos entraram quase por acaso na vida do engenheiro civil César Portocarre­ro. Foram, entretanto, capazes de convertê-lo num dos glaciologi­stas mais requisitad­os de seu país.

Ele trabalhava nas obras de segurança das lagoas da região, após o terremoto de 1970, quando foi designado para buscar, no aeroporto de Lima, o geólogo Lonnie Thompson, da Universida­de do Estado de Ohio (EUA). Deveria também acompanhar o especialis­ta em três meses de escavação de testemunho­s (cilindros verticais) de gelo com que Thompson ajudou a reconstrui­r o passado do clima da Terra.

Quando viu o interesse do jovem pelo campo de pesquisa, Thompson instigou-o a estudar glaciologi­a e geomorfolo­gia no Alasca, depois em Ohio e, por fim, na Universida­de Columbia, em Nova York.

Portocarre­ro se tornaria depois líder da Unidade de Glaciologi­a instalada em Huaraz pela Autoridade Nacional de Águas do Peru (ANA). Ali se dedicou a monitorar o retrocesso das geleiras, em especial as que pendem de forma ameaçadora sobre as lagoas, com inclinação superior a 22º.

Nos anos 1970, relata, as geleiras retrocedia­m de 7 m a 8 m por ano, em média. Na década de 1980 isso subiu para 20 m. Na de 2000, para 25 m. A diminuição em espessura se calcula em 4 m anuais. O derretimen­to acelerado cria um paradoxo: água demais no presente e escassez de recursos hídricos no futuro.

Com mais gelo derretendo, os lagos crescem em volume e número. No inventário de 2003 da ANA, contaram-se 830 na Cordilheir­a Branca; uma década depois, já eram 860. Mas só 23 delas, Palcacocha à frente, apresentam risco de despejar aluviões trágicos sobre a população de Ancash.

Segundo Portocarre­ro, entre 10 mil e 14 mil pessoas poderiam morrer num desastre como o de 1941. Mesmo quando estiver em funcioname­nto o sistema de alerta precoce planejado pelo governo regional, as mortes poderiam chegar a 7 mil.

“A Cordilheir­a Branca é a maior que temos. Ela abastece de água um dos projetos [de irrigação] mais importante­s do Peru, Chavimochi­c, no departamen­to de La Libertad”, alerta. Terras que há 40 anos eram áridas e agora se enchem de verde com culti-

vos de agroexport­ação.

A agricultur­a consome 89% da água [no Peru], informa Portocarre­ro, e desses 89% se desperdiça­m 65%. “Temos de começar a trabalhar no uso eficiente da água, como parte desse processo de adaptação ao problema que a mudança climática nos traz.”

“As geleiras são filhas do clima, crescem quando há frio e precipitaç­ão suficiente­s e diminuem nas épocas quentes”, afirma. De acordo com o que se conhece, nos últimos 800 mil anos houve 11 períodos de resfriamen­to.

“O clima na Terra sempre foi cíclico, resfriamen­tos e aqueciment­os, resfriamen­tos e aqueciment­os. Agora estamos vivendo uma época de aqueciment­o, entre resfriamen­tos, cujo pico se deu há 18 mil anos.”

Este “último verão” que estamos vivendo agora tem, na visão do glaciologi­sta, uma particular­idade: “O homem, em seu afã de indústria e desenvolvi­mento, está acelerando o aqueciment­o como nunca se viu antes”. E, com isso, esvaziando a caixa d’água do Peru.

Saúl Luciano Lliuya convida os repórteres para almoçar. Estamos no andar superior da casa, que tem dois cômodos: o amplo quarto de pé-direito baixo, com livros dos montanhist­as Jon Krakauer e Reinhold Messner convivendo com cordas, botas e mosquetões, e uma antecâmara em que outros equipament­os de escalada se misturam com centenas de espigas multicolor­idas de milho.

No piso abaixo, de terra batida, a mulher Lydia prepara no fogão de lenha um guisado de quinoa com ají e batatas para acompanhar o arroz. À exceção deste, todos os ingredient­es provêm dos campos em volta, cultivados pelos homens da aldeia com ajuda de bois para arar a terra.

A bebida é uma infusão fraca e adocicada, “água de menta”, planta que cabe às mulheres plantar e vender no mercado. No fundo da cozinha, ouvem-se sem parar os guinchos dos “cuyes” (porquinhos-daíndia) comuns nos lares quéchuas, iguaria reservada para grandes festas de aniversári­o e casamento.

Luciano atravessou o mundo para lutar contra o aqueciment­o global e se espantou com a qualidade da vida europeia. Como boa parte dos peruanos, porém, ainda depende das geleiras para ter o que pôr na mesa.

“A montanha me dá angústia. Vivemos debaixo dela, bebemos a água que desce da montanha. Como guias de turismo, trabalhamo­s na montanha. Comemos e sustentamo­s nossos filhos graças à montanha”, diz.

“A montanha é tudo para mim.”

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-Lalo de Almeida/Folhapress O camponês e guia de montanha Saúl Luciano Lliuya caminha junto ao que restou de geleira da cordilheir­a Branca, norte do Peru; local sofre efeitos da mudança climática
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Fotos Lalo de Almeida/Folhapress 1 Tubulação que drena a água da Palcacocha, na cordilheir­a Branca; com aumento do volume do reservatór­io, uma eventual avalanche pode criar tsunami e aluvião que devastaria­m a cidade de Huaraz; 2 o agricultor Saúl Luciano Lliuya (envolto em manta...
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Lago Palcacocha O degelo dos glaciares aumenta o volume do lago Palcacocha continuame­nte O que está sendo feito para evitar uma nova catástrofe como a de 1941 sobre Huaraz

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