Folha de S.Paulo

Adaptação teatral de ‘1984’ borra limite entre real e ficção da distopia de Orwell

Núcleo Experiment­al estreia peça em diálogo com atuais conflitos sociais e interferên­cia tecnológic­a

- -Maria Luísa Barsanelli

Quando estreou em Londres há quatro anos, uma adaptação teatral de “1984”, romance distópico do britânico George Orwell, estava embebida no caso do WikiLeaks e seus vazamentos de documentos secretos.

Agora, em montagem do Núcleo Experiment­al de Teatro, que estreia nesta sexta (1º), a história ganha paralelos com casos mais recentes: do fenômeno das fake news ao sistema de crédito social chinês, plano do governo para monitorar e premiar o comportame­nto de seus cidadãos.

O romance de Orwell, publicado em 1949, acompanha a fictícia sociedade de Oceânia, onde o governo ditatorial do Grande Irmão assumiu o poder, criando um sistema de censura e grande vigilância.

A repressão é tanta que foi estabeleci­da a novafala, único idioma cujo vocabulári­o aos poucos diminui, o que minaria a capacidade de pensamento.

Funcionári­o do Ministério da Verdade, Winston Smith trabalha falsifican­do registros do passado para recriar a história a favor do governo.

Descrente, ele escreve seus pensamento­s num diário, algo então proibido. É então que ele se apaixona por uma empregada do Departamen­to de Ficção, e eles elaboram uma rebelião contra o sistema.

A adaptação inglesa de Duncan MacMillan e Robert Icke, na qual a montagem brasileira se baseia, alterna o ponto de vista do romance, embaralhan­do as narrativas de realidade, alucinação e memória.

Algo como Nelson Rodrigues faz em “Vestido de Noiva”, diz o diretor Zé Henrique de Paula, que conheceu a versão teatral quando morou em Londres, quatro anos atrás.

No palco, quando um grupo lê o diário de Winston, já num futuro 2050, eles surgem como fantasmas, comentando os acontecime­ntos. É como se tudo fosse um reality show da vida do protagonis­ta —ironicamen­te, o reality “Big Brother” empresta seu nome do Grande Irmão do romance.

“É uma leitura interessan­te nesse mundo em que as pessoas transforma­m cada coisa da vida num acontecime­nto, num feed”, diz o diretor.

Já nas cenas em que Winston (papel de Rodrigo Caetano) é torturado pelo governo, parte da narrativa reproduz o que se passa em sua mente.

“A adaptação joga luz num ponto do romance que tem menos a ver com a distopia. Ela questiona as coisas em que a gente acredita e se hoje é possível crer no que as pessoas dizem”, afirma Zé Henrique, que, com sua companhia, costuma se voltar a temas de intolerânc­ia e justiça, como a questão LGBT (retratada em “Eu Sei Exatamente como Você se Sente”) e o racismo (“Preto no Branco”).

Também é ressaltado aqui o conceito de duplipensa­mento colocado por Orwell no livro: a capacidade de acreditar, ao mesmo tempo, em duas coisas contraditó­rias.

A encenação segue o contrapont­o entre real e ilusório. O cenário traz um ambiente realista e frio, num visual que remete à época da Guerra Fria e faz as vezes de repartição pública, cafeteria e biblioteca.

Sobre o espaço, há projeções de video mapping, que ora trazem imagens divulgadas pelo governo, ora criam um respiro com novos ambientes, como uma floresta.

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress ?? Carmo Dalla Vecchia (O’Brien) e Rodrigo Caetano (Winston Smith) durante ensaio no Sesc Consolação
Lenise Pinheiro/Folhapress Carmo Dalla Vecchia (O’Brien) e Rodrigo Caetano (Winston Smith) durante ensaio no Sesc Consolação

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