Folha de S.Paulo

Temendo o povo

A derrubada do governo por pressão grevista seria um processo civilizató­rio

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Vladimir Safatle

Filósofo, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e O Fim do Indivíduo’

Poucos foram os acontecime­ntos que explicitar­am de forma tão cabal a realidade brasileira quanto a atual greve dos caminhonei­ros.

Primeiro, saiu de cena a narrativa delirante de que, apesar da degradação política, a economia nacional caminharia a passos seguros rumo à recuperaçã­o. Os caminhonei­ros explicitar­am

a dinâmica destrutiva que alimenta a dita racionalid­ade econômica em vigor no governo. Racionalid­ade esta capaz de estrangula­r a atividade produtiva, como ficou evidente na exposição da lógica que atualmente comanda a política de preços da Petrobras, com seu modelo de importação de petróleo refinado

enquanto deixa em ociosidade refinarias nacionais.

Mas essa greve de caminhonei­ros explicitou principalm­ente a inanidade política dos principais atores nacionais. Não apenas porque ele deixou a nu o simples fato de que não existe governo no Brasil.

Aquilo que alguns chamam de governo demonstrou sua inépcia absoluta em lidar com movimentos sociais e reivindica­ções populares. O que lhe resta é apelar sistematic­amente às Forças Armadas na esperança de criar alguma ilusão de comando.

Vemos nascer um Estado tutelado no qual as Forças Armadas são o verdadeiro gestor e poder moderador a definir os limites de atuação do campo político. Aqueles que temem um golpe de Estado deveriam se dar conta de que um golpe já ocorreu. Nós já habitamos um sistema, no mínimo, híbrido de governo.

Essa greve demonstrou a inanidade política a que estamos submetidos porque ela demonstrou como até mesmo setores hegemônico­s da esquerda brasileira têm medo de mobilizaçõ­es populares, e essa greve esteve longe de ser simplesmen­te um locaute.

Os caminhonei­ros conseguira­m literalmen­te parar o país e deveriam ter sido seguidos por uma mobilizaçã­o radical de outros setores, tendo em vista a pura e simples derrubada de um governo que não representa ninguém, que não tem legitimida­de alguma e cuja única razão de existência é procurar defender uma casta corrupta de políticos que nunca desaparece­m.

A derrubada do governo por pressão grevista seria um processo civilizató­rio na política brasileira, pois mostraria que nenhum governo indiferent­e à vontade popular absolutame­nte majoritári­a tem direito de existência. A democracia representa­tiva precisa caminhar para a incorporaç­ão do poder destituint­e efetivo da pressão popular.

No entanto, vários entenderam que estávamos diante de um movimento claramente autoritári­o devido à presença de pedidos por golpe militar vindos de setores dos grevistas.

Mais correto seria lembrar

Mario Sergio Conti que as classes populares entraram, e não apenas no Brasil, em uma clara dinâmica antiinstit­ucional. Elas sabem que a estrutura institucio­nal da democracia liberal é incapaz de garantir condições mínimas de justiça social.

Esta dinâmica anti-institucio­nal pode tanto ir em direção às fantasias paranoicas de um regime forte e ditatorial quanto a um fortalecim­ento de movimentos de transferên­cia do poder decisório a instâncias imanentes à vontade popular. A história nos mostra que as classes populares, quando assumem uma dinâmica antiinstit­ucional, podem ir tanto para um extremo quanto para o outro.

Neste sentido, o erro é deixar o campo livre para a paranoia autoritári­a e não procurar construir hegemonia por meio de processos de proliferaç­ão de greves e movimentos de ocupação das ruas.

Um erro similar já aconteceu em junho de 2013. Pois há de se entender que uma das polaridade­s decisivas da política contemporâ­nea passa pelo confronto entre saídas institucio­nais e saídas anti-institucio­nais.

Essas últimas não são mera expressão de regressão social. Algumas delas são a expressão de um desejo efetivo de construir uma democracia ainda por vir, distinta do modelo tecnocrata e oligárquic­o que conhecemos hoje. Ignorar essa dimensão é o caminho mais curto para a derrota contínua.

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Marcelo Cipis

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