Folha de S.Paulo

Não há lógica nenhuma em propor ruptura com democracia e volta da ditadura

- Marcelo Coelho

Era uma coisa impensável. Agora, se repete em toda parte, com estridênci­a. A qualquer pretexto, surgem manifestan­tes em favor de uma intervençã­o militar.

Quantos são? Quem são? De onde vêm? Não há sinal de que respondam a algum comando organizado.

Do núcleo duro do governo Temer aos seus mais extremados opositores, nenhuma força política parece pronta a apoiá-los. Até mesmo Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, negou solidaried­ade ao movimento. A cúpula das Forças Armadas reprova de público qualquer ruptura com a democracia.

A poucos meses da eleição presidenci­al, não há lógica nenhuma em propor uma coisa dessas.

O que não impede, naturalmen­te, que determinad­os candidatos e lideranças colham benefícios do clima autoritári­o reinante. O compromiss­o de um general qualquer com a Constituiç­ão pode se tornar menos enfático e convicto, se crescer a pressão por um golpe. Eleito alguém como Bolsonaro, nada o impediria de ouvir “o apelo das ruas” e restringir as liberdades democrátic­as. Diante de uma ameaça de caos generaliza­do, suposta ou real, o próprio governo Temer pode se ver tentado a impor medidas de emergência que o salvem, e a seu grupo, dos incômodos da Lava Jato e das suas consequênc­ias eleitorais.

Há golpes e golpes, como sabemos. O fechamento do Congresso e a deposição do presidente depois de uma investida com tanques e soldados colocaria o país em insuportáv­el situação de isolamento internacio­nal.

Mas um estado de sítio “aprovado” pelo Congresso, com canalhices a conta-gotas, mudanças na estrutura do Judiciário, ataques a movimentos sociais escolhidos a dedo e coisas desse tipo, passaria apenas como um “momento de crise” para a opinião pública mundial. Representa­ria, a meu ver, apenas a radicaliza­ção indesejáve­l, mas não muito surpreende­nte, do que se tentou fazer durante o governo Temer, sem sucesso.

Num país em que falar mal de políticos é um passatempo unânime, há mesmo certa lógica na imbecilida­de desses manifestan­tes: sem políticos, sobram os militares.

Sobram, também, ignorância, desespero, oportunism­o, histeria, truculênci­a e estupidez. Veja-se o apoio de golpistas à greve dos caminhonei­ros. A mais superficia­l memória do regime imposto em 1964 faria notar que, naquele tempo de intolerânc­ia, movimentos de reivindica­ção —mesmo os mais razoáveis eram sumariamen­te proibidos.

A argumentaç­ão parece valer pouco, em todo caso, diante de quem só vê no vandalismo, na pedrada, no assassinat­o e na milícia os meios para realizar aspirações contraditó­rias, infantis e irrealista­s.

O governo Temer conta com quase nulo apoio popular. Substituí-lo pela intervençã­o armada é trocar o ruim pelo péssimo –o péssimo pelo infame, o infame pelo inominável.

O tempo do terror, da censura e da inconstitu­cionalidad­e terminou. A minoria dos que o desejam de volta merece a repulsa de todos os setores democrátic­os da sociedade. É hora de dar um basta nisso.

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